Ramificações de uma tragédia anunciada
As ramificações de uma tragédia anunciada
Enchentes no RS mostram que, quando o meio ambiente é negligenciado e o lucro é a prioridade, todos pagam o preço
Trecho da BR-386 totalmente destruído pela força das águas do Rio Taquari,
em Lageado (RS) - AFP
Por mais que muita gente não acredite, a previsão do tempo frequentemente acerta e vale a pena ficar de olho. No final de abril, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e a MetSul Meteorologia divulgaram previsões de altos volumes de chuva e até alertas de risco de enchentes no Rio Grande do Sul. Efetivamente, no Vale do Taquari, os estragos começaram já na madrugada do dia 29 de abril, quando as precipitações atingiram 200 milímetros e duas mortes foram registradas.
Em seguida, a calma orientação das autoridades pedia às pessoas que ficassem em casa, mas os alertas de mau tempo, instabilidade e grande volume de chuva seguiam. E em pouco mais de uma semana, a situação se agravou enormemente e não adiantou apenas ficar em casa.
No dia 1º de maio, com os atos do Dia do Trabalhador cancelados em algumas cidades do RS, a enchente já era reconhecida como a quarta maior no estado desde junho de 2023, com 107 municípios afetados e, agora, um tom de emergência vindo das autoridades. Nas informações do Metsul, os acumulados extremamente altos de precipitação provocariam uma situação de desastre de grandes proporções no estado gaúcho. E foi o que aconteceu.
Já no dia 2 de maio, o que já era tarde, foi decretado estado de calamidade pública no RS pelo que estava sendo considerado o "maior desastre do estado", nas palavras do governador Eduardo Leite (PSDB). De fato, enchentes, rios transbordando, deslizamento de terra e cidades submersas eram o cenário do estado.
Conforme o governador, "estamos vivendo um momento muito crítico. Em setembro do ano passado, tivemos uma enxurrada muito severa, mas o tempo abriu em seguida, o que nos deu condições de entrar em campo mais rapidamente. Neste momento, temos muitas dificuldades operacionais para fazer os resgates". De lá para cá, as águas tomaram a capital do estado, Porto Alegre, e diversos outros municípios.
É bastante curioso que ele reconheça que houve um momento crítico há apenas 8 meses e, de lá para cá, não tenha feito algo para evitar novas ocorrências. Pelo contrário, o governo do estado ativamente ignorou um relatório feito pela Assembleia Legislativa, pedindo medidas como maior investimento nas áreas de prevenção, na área da defesa civil e uma legislação mais rígida com a questão da preservação ambiental, por exemplo.
Além disso, em 2019, Eduardo Leite limou ou alterou 480 pontos da lei ambiental do estado, atropelando o Código Ambiental do Rio Grande do Sul. À época, Luciana Genro (Psol) disse que o RS estava "na contramão de uma onda mundial, que é de valorização e de preocupação com a causa ambiental", acrescentando que a aprovação do projeto seria "uma irresponsabilidade que terá um preço elevado".
Para Leite, o que está ocorrendo agora é apenas uma tragédia climática e considera "injusto culpar a legislação local" por uma enchente em mais de 400 municípios, com mais de 100 fatalidades e mais de 1 milhão de gaúchos afetados, sendo 230 mil desabrigados até o fechamento deste texto.
Vale dizer que esse não é o mesmo pensamento da população, já que 68% dos entrevistados na pesquisa Genial/Quaest desta semana considera que o governo do estado, liderado por Leite, é o principal responsável pela calamidade que assola o estado há mais de uma semana.
Aparentemente, este é sim o momento de politizar, apontar e culpar os responsáveis por tudo o que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Afinal, a tragédia foi anunciada e até vai além de ações internas do governo, pois envolve todo o sistema político-econômico que impera no país. Quando o meio ambiente é negligenciado e o lucro é a principal prioridade de governos, empresas e até das pessoas, todo mundo paga o preço.
Neste meio tempo, vale reforçar as ações positivas que dão um alívio, mesmo que pequeno, em situações desesperadoras. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e o Levante Popular da Juventude iniciaram prontamente a distribuição de marmitas a atingidos pelas enchentes por meio das cozinhas solidárias.
A Conab, por sua vez, entregou quase 500 cestas de alimentos a cozinhas emergenciais que estão preparando refeições para os atingidos. Já a Missão Sementes de Solidariedade mobilizou entidades em socorro às vítimas das enchentes, recolhendo doações de todo o país. E até famílias do MST atingidas pelas chuvas iniciaram uma cozinha solidária em Viamão (RS) para atender à população de Eldorado do Sul. Tem ainda uma campanha popular para salvar animais perdidos na enchente em Porto Alegre.
Até o governo federal tem se manifestado, com o presidente Lula (PT) afirmando que vai destacar todos os esforços necessários para reconstrução do RS, antecipando pagamento de benefícios e facilitando crédito para injetar R$ 50 bilhões no RS, anunciando novas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) com R$ 1,7 bilhão para a prevenção de desastres, dentre outros movimentos que indicam atenção e presença.
As redes sociais se dividem entre notícias falsas, pedidos de resgate e depoimentos tristes, campanhas para doação, enaltecimento de instituições como os Correios e o movimentos populares como o MST, momentos de alívio coletivo e informações desencontradas.
Mais uma vez, é em situações assim que a relevância e a importância do jornalismo de qualidade, que vai além da mídia hegemônica, são reforçadas. É importante criticar. É importante denunciar. É importante recomendar como ajudar. É importante estar presente e não deixar tragédias serem esquecidas e os responsáveis passarem impunes. Este é nosso papel.
Não é um ofício sempre fácil ou suave. Frequentemente, é doloroso ter que acompanhar intensamente o sofrimento de tanta gente, de pessoas próximas ou distantes, daqueles que conhecemos ou nos colocamos no lugar, ver a negligência daqueles que poderiam ter evitado ou que, agora, poderiam ajudar.
Mas o comprometimento fala mais alto e nossa proposta é seguir nesta luta para tentar ao máximo evitar mais tragédias como esta. Esperamos que você siga nos acompanhando neste compromisso.
E você pode ajudar nas doações para o MST pelo Pix 093521410001-48 e para as cozinhas solidárias pelo Pix 733164570001-83.
* Rafaella Coury é Coordenadora de Redes Sociais do Brasil de Fato
Edição: Nicolau Soares
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