Redução do Difícil Acesso em escolas do campo
Redução do Difícil Acesso pode levar ao fechamento em massa de escolas do campo
“A gente perde em torno de uma hora e meia para ir e vir e já gastava mais do que recebia com o adicional antigo. Agora os professores não vão mais querer trabalhar lá. O governador vai conseguir o que ele queria: fechar as escolas do campo”.
O relato é de Janaine Trindade, diretora da escola rural São Francisco de Assis, na pequena comunidade da Cabeceira do Palmeira, em Roque Gonzales.
Até a folha de março, quem trabalhava na instituição recebia uma adicional de R$ 1260, a chamada Gratificação de Difícil Acesso. Já a partir de abril, o valor no contracheque cairá pela metade.
São R$ 600 a menos de um benefício que deveria servir para incentivar educadores(as) a trabalhar em locais que poucos querem ir; em escolas periféricas, distantes ou localizadas em regiões violentas e de trafegabilidade limitada.
O achatamento dos valores do adicional, que mudou de nomenclatura para Local de Exercício, é brutal em todos os níveis, mas o impacto nas escolas do campo é especialmente revelador do caráter injusto da alteração.
Levantamento realizado pelo Dieese aponta que 85% das 520 escolas rurais receberão menos do que a metade do valor máximo. Nenhuma chega a 100%.
Para o CPERS, trata-se de uma forma de acelerar o fechamento das instituições, processo em andamento desde o governo Sartori e aprofundado já no primeiro ano de gestão de Eduardo Leite (PSDB).
“Se escolas do campo não merecem receber o valor total, para que serve o adicional de local de exercício?”, questiona a presidente Helenir Aguiar Schürer.
Ana Maria Aranda, professora da escola Afonso Martin Rohlfes, de Vale do Sol, perdeu o benefício nas duas escolas em que trabalha e não sabe como vai conseguir manter o seu deslocamento.
“Saio todos os dias da minha casa, em Santa Cruz do Sul, antes das 7h da manhã para ir ao interior de Vale do Sol para trabalhar. Ao meio dia estou na estrada novamente, retornando a Santa Cruz para me deslocar a outra escola em que leciono à tarde. A partir de agora não vou mais receber um centavo de difícil acesso, porque as duas escolas em que trabalho não foram enquadradas nos critérios da Seduc”, expõe.
Ela recebia 60% de uma escola e 40% da outra, totalizando um acréscimo de R$ 630,00 no seu salário. Desse valor saía a gasolina para o deslocamento.
“É justo? As escolas do interior vivem uma realidade muito triste. Quem vai querer dar aulas lá sem receber um centavo para o deslocamento? A minha escola de Vale do Sol recebe professores de 3 municípios, Verá Cruz, Santa Cruz e Candelária, porque não tem professores suficientes na cidade. Como vai ser no futuro?”, desabafa.
A diretora Janaine, de Roque Gonzales, ainda ressalta as dificuldades para cumprir as demandas do governo na hora de efetuar as mudanças.
“Fiquei muito assustada com a forma autoritária com que o questionário nos foi imposto pela Seduc, tínhamos 24h para responder, sob pena de não receber o benefício. É uma responsabilidade muito grande em meio a uma pandemia. A gente não teve tempo para conversar com os colegas e estamos respondendo sobre a vida deles”, conta.
“Inicialmente fiquei surpresa e apavorada e agora tenho um sentimento de raiva e revolta. Essa iniciativa do governo em meio a uma pandemia, nos deixa ainda mais inseguras”, complementa Janaine.
Descaso continuado
No campo, quando uma escola se fecha, é decretada a morte da comunidade. A instituição de Roque Gonzales já estava na mira do governo para fechamento. Em agosto de 2019, o CPERS visitou a escola e acompanhou a luta dos estudantes, educadores(as) e familiares
Dados do censo escolar da educação básica no Brasil demonstram o decréscimo do número de escolas e de matrículas na área rural. O censo escolar de 2003 registrou 103.328 escolas rurais e 7,9 milhões de matrículas; em 2013, foram 70.816 escolas rurais e 5,9 milhões de matrículas.
A continuidade das escolas rurais é mais que uma questão corporativa. Trata-se da manutenção dos jovens no campo, do fortalecimento da agricultura familiar e da própria sobrevivência de culturas locais.
“Quando as crianças são retiradas do convívio e vão para a cidade, a maioria não retorna. As comunidades envelhecem e acabam, somem do mapa. Quem já tem muita terra, compra o que sobrou e acumula mais propriedades para o latifúndio e o agronegócio”, explica a presidente Helenir.
Maria Andréia Maciel Nerling, professora da escola Antonio de Sousa Neto, localizada no assentamento Bom Retiro, relata que sua escola já vinha sentindo os impactos do descaso do governo.
“Sofremos revezes com a enturmação, a redução de recursos humanos, a redução de turnos… atualmente estamos atendendo todos os alunos do 1° ao 9° ano apenas no turno da tarde e todos numa sala. Isso tem trazido apreensão para a comunidade escolar. Inclusive, perdemos alunos no início do ano. Recorremos ao MP e até agora não tivemos retorno”, expõe.
A escola de Maria Andréia está localizada a 22,5 Km da sede do município. Antes, ela recebia 100% de difícil acesso. Com o reenquadramento o valor passou para R$ 315. Ela também leciona em outra escola na periferia da cidade que também foi reenquadrada.
“Estou contando que terei uma redução de quase R$ 800,00 em meu salário. Isso é muito grave. Tenho perdido o sono. Já estamos muito defasados e endividados. Para nos deslocarmos para a escola precisamos ir de carro, porque não tem transporte coletivo que contemple o nosso horário. Esse valor que vamos receber não paga nem um tanque de gasolina por mês e gastamos mais que um. É só fazer os cálculos, são 45 km por dia. Não sabemos se poderemos continuar. Porque desse jeito, vamos pagar para trabalhar”, desabafa.
Municipalização
Eduardo Pastorio, professor do Estado e atual diretor administrativo da Secretaria Municipal de Educação de São Gabriel, era coordenador das escolas do campo do município até o ano passado.
Ele nos contou um pouco da realidade dessas instituições em seu município.
“As escolas do campo enfrentam diversos desafios para a sua sobrevivência. Desde a falta de formação continuada específica até a questão do transporte escolar. Mas o deslocamento é um dos maiores desafios, aqui temos escolas distantes até trinta e nove quilômetros da cidade. Agora, com essas mudanças no plano de carreira os problemas vão se agravar ainda mais”.
Eduardo ressalta que há também um projeto de entregar para os municípios as escolas estaduais que de ensino fundamental, principalmente aquelas ditas “problemas”.
“As coordenadorias sempre consideram as escolas do campo como um problema. Então, na verdade, há um descaso não porque é difícil, mas porque já está ordenado no sistema. Está ordenado para que isso aconteça, para atirar a responsabilidade para os municípios, porque querendo ou não, a população na hora de cobrar, não vai ao Estado, ela recorre a Prefeitura”.
Eduardo se diz preocupado com o futuro da vida no campo.
“Muitas vezes o único serviço público que chega no campo é a educação, a escola. E agora o trabalhador do campo, o ribeirinho, até isso pode perder”.
CPERS contesta critérios e luta pela reversão
Em meio a uma crise sem precedentes, ciente da impossibilidade de mobilização, sem diálogo e sem apresentar qualquer contrapartida para repor as perdas acumuladas da categoria, Eduardo Leite (PSDB) reduziu os proventos de cerca de 70% dos trabalhadores(as) em educação.
O CPERS considera a mudança em meio à pandemia uma manobra desumana e traiçoeira.
O Sindicato ainda estuda alternativas legais para barrar o retrocesso e exige a revogação dos novos enquadramentos, respeito à representação sindical e a revisão dos critérios com a participação da categoria.
Nesta quarta-feira (29), em reunião com representantes de nove bancadas da Assembleia Legislativa, o CPERS pleiteou a criação de uma comissão de reenquadramento para rediscutir os critérios do adicional de Local de Exercício (Difícil Acesso), conforme apontado em diagnóstico do TCE em 2015.