Em todas as reflexões acerca de disposições constitucionais é preciso atentar para quais temas são diretamente tratados no texto da Constituição e quais temas são deixados, por expressa determinação do constituinte, ao encargo do legislador infraconstitucional.

É claro que a Constituição não pode tratar de todas as matérias e, só por isso, algumas matérias devem ser tratadas em lei. É preciso, contudo, um olhar desconfiado para determinadas disposições constitucionais que utilizam expressões como “a lei disporá sobre” ou “na forma da lei”.

Nas constituições autoritárias, por exemplo, nunca se lerá que o direito à liberdade de expressão está suspenso ou que as liberdades de reunião ou associação não poderão ser exercidas. Estará sempre escrito algo como: a liberdade de expressão é direito de todos e será exercida na forma da lei ou a lei disporá sobre os requisitos e condições para constituição de associações. Caso um dia você se depare com alguma disposição desse tipo, não tenha dúvida, você está diante de uma constituição autoritária que deixa para o legislador infraconstitucional a tarefa de limitar o exercício de direitos fundamentais

Mas o que isso tem a ver com a reforma administrativa? Em tese, nada. Na prática, porém, ao analisar a Proposta de Emenda Constitucional nº 32/2020, que é a proposição normativa apresentada ao parlamento pelo Governo Federal como projeto de reforma administrativa, precisamos prestar muita atenção aos temas que, depois da reforma, deverão ser tratados em leis infraconstitucionais e às consequências que podem decorrer da reforma e que não estão escritas na proposta de emenda à Constituição.

O projeto de emenda constitucional, com efeito, não dispõe expressamente sobre as ameaças ao princípio da obrigatoriedade do concurso público que o projeto promove, mas, como veremos, essas ameaças estão lá. O projeto também não alerta o intérprete que os poderes do chefe do Poder Executivo estão sendo ampliados, mas estão. A proposta de emenda constitucional tampouco é explícita quanto ao fato de que reduz a autonomia de autarquias comuns, agências reguladoras e outros órgãos, mas essa redução está lá. Nós voltaremos a todos esses assuntos mais adiante. Antes, para entender a reforma administrativa que se pretende promover, é preciso tratar do modelo de Administração Pública estabelecido pela Constituição Federal Brasileira.

A Constituição de 1988, diploma que marcou o encerramento de mais de 20 anos de regime autoritário em que os poderes eram concentrados no Executivo, institui um modelo democrático de Administração Pública composto por uma série de limites ao exercício de poderes públicos, sobretudo, aos poderes exercidos por agentes do Poder Executivo.

A Constituição Federal, na atual redação, determina, em seu artigo 37, II, que o acesso a cargos públicos deve se dar por meio de aprovação em concurso público de provas e títulos, excepcionadas apenas as nomeações para cargos em comissão que são de livre nomeação e exoneração, mas que só podem ser cargos de direção, chefia e assessoramento. Ou seja, todos os cargos técnicos, todos os cargos que têm por atribuições as atividades burocráticas e cotidianas da Administração Pública devem ser ocupados por pessoas aprovadas em concurso público. Em consonância com a Constituição Federal, a jurisprudência de nossos tribunais é pacífica no sentido de que cargos em comissão não podem ter atribuições meramente técnicas ou burocráticas.

O princípio da obrigatoriedade do concurso público e o fato de que a Constituição abre pouca margem para que esse princípio seja afastado atende a dois objetivos: i) garantir acesso democrático a cargos públicos a todas as pessoas que preencham as condições legais para exercício do cargo; ii) buscar selecionar as pessoas mais qualificadas para o serviço público. Se o concurso público, de fato, atende a esses objetivos, é outra discussão, mas, sem dúvida, a ausência de concurso e nomeações arbitrárias não são a solução para os problemas e falhas que hoje afetam a Administração Pública.

O princípio da obrigatoriedade do concurso público sofrerá um forte golpe se a reforma administrativa for aprovada.

Em primeiro lugar, porque, se aprovada a emenda, os cargos que poderão ser preenchidos sem concurso não serão apenas os cargos em comissão de direção, chefia e assessoramento. A PEC nº 32/2020 prevê a possibilidade de criação de cargos de liderança e assessoramento que serão destinados às atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas. A PEC não determina que o acesso a esses cargos dar-se-á por meio de aprovação em concurso público, o texto da PEC estabelece apenas que a lei disporá sobre a ocupação desses cargos.

Ou seja, na Administração Pública Federal, em todos os Estados, no Distrito Federal e em todos os Municípios poderão ser criados cargos com atribuições de chefia ou meramente técnicas e burocráticas que, em tese, poderão, na forma da lei, ser ocupados por pessoas nomeadas livremente sem aprovação em concurso público. A alteração trazida pela emenda não apenas golpeia o acesso isonômico e democrático a cargos públicos como abre portas para ações fisiológicas, pessoalizadas e imorais de distribuição de cargos.

Em segundo lugar, porque a reforma insere no texto constitucional o artigo 37-A que determina que o poder público poderá, na forma da lei, cooperar com particulares e utilizar recursos materiais e humanos e particulares, sendo vedado apenas o uso de recursos humanos particulares para a realização de atividades típicas de Estado. Mas a Emenda Constitucional não define que atividades são típicas de Estado. Sendo assim, a lei poderá criar formas de cooperação que permitam que particulares exerçam funções que, hoje, são exercidas por servidores aprovados em concurso público. O que significa um número bem menor de concursos e a chance de contratar pessoas privadas com fundamento em indicações políticas, amizades, inimizades, arranjos os mais diversos.

O golpe de misericórdia vem com a autorização genérica para realização de contratações por tempo determinado, mediante processo seletivo, sem concurso público. Atualmente, a Constituição Federal autoriza a realização de contratações por tempo determinado sem concurso público apenas para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público. Apesar dessa limitação constitucional as contratações temporárias já ocorrem de forma ilícita reiterada e corriqueiramente em todos os entes da federação. Gestores públicos não promovem concursos públicos e suprem a necessidade de pessoal do serviço público com contratações de pessoal por tempo determinado. Imaginem o que vai acontecer se, aprovada a reforma, essas contratações puderem ocorrer sem limitação alguma, em qualquer situação e não apenas para atender a necessidades excepcionais.

Em suma, só quando não for possível criar um cargo de livre nomeação por lei, quando não for possível utilizar mão de obra privada por meio de cooperação, na forma da lei, e quando não for realizada contratação de pessoal por tempo determinado é que será realizado concurso público. Difícil acreditar que isso possa ser bom para a democracia ou para a eficiência do serviço público. Se a reforma for aprovada, contaremos aos nossos netos sobre aqueles tempos em que existia concurso público.

Além das ameaças ao concurso público, merecem também ser abordados os efeitos da reforma na vitaliciedade e estabilidade dos servidores públicos. A Constituição de 1988, também em resposta aos anos de autoritarismo, garantiu a alguns agentes públicos vitaliciedade e a outras categorias de agentes públicos a estabilidade com o objetivo de permitir que tais agentes não estejam sujeitos ao arbítrio de seus superiores.

A vitaliciedade e a estabilidade vêm sendo apontadas como razões determinantes na morosidade e ineficiência dos serviços públicos, embora não se tenha, de fato, comprovado que uma coisa é causa da outra.

Em linhas muito gerais, cabe esclarecer que vitaliciedade é a garantia concedida aos magistrados, membros do Ministério Público e Ministros e Conselheiros de Tribunais de Contas que consiste na determinação de que esses agentes só podem ter a perda do cargo decretada por decisão judicial transitada em julgado. Já a estabilidade é a garantia de que gozam os servidores públicos efetivos, aprovados em concurso públicos, após três anos de exercício de que só perderão o cargo por sentença judicial ou após processo administrativo disciplinar em que lhes seja garantido o contraditório e a ampla defesa. A vitaliciedade e a estabilidade, portanto, não impedem que o agente público perca o cargo, apenas garante que este só perderá o cargo após o devido processo legal. Isso permite que agentes públicos se posicionem contra suas chefias, se recusem a executar ordens inconstitucionais e desestimula a que os servidores públicos se calem ou sejam coniventes com ilegalidades e imoralidades de seus superiores por medo de perder seus cargos.

A reforma administrativa não toca na vitaliciedade dos magistrados, membros do Ministério Público e Ministros e Conselheiros das Cortes de Contas. Para não dizer que a reforma não muda nada, o Projeto de Emenda à Constituição torna inconstitucional qualquer disposição legal que estabeleça pena de aposentadoria compulsória. É muito comum vermos os jornais e a população indignados com situações concretas em que ocupantes de cargos vitalícios, sobretudo juízes, após praticarem atos ilícitos, são aposentados compulsoriamente.

Isso ocorre porque a aposentadoria compulsória é a sanção administrativa mais grave aplicável aos agentes que gozam de vitaliciedade e a perda do cargo depende de decisão judicial. Ora, se a perda do cargo não ocorre quando deveria, isso se deve à falta de decisão judicial que determine a perda do cargo, isto é, se deve à morosidade ou ao corporativismo do Poder Judiciário. Não podemos culpar a Constituição pela inércia e lentidão dos magistrados.

Se a demissão desses agentes não ocorre hoje, vai continuar não ocorrendo, porque a vitaliciedade não deixou de existir e esses agentes só poderão ser demitidos por decisão judicial. A diferença é que a pena administrativa mais grave que poderá ser aplicada independentemente de decisão judicial não será mais a pena de aposentadoria compulsória, a sanção mais grave aplicável será de suspensão. Então, se aprovada a reforma administrativa, o juiz que deveria ser demitido e não é, não será mais aposentado, será suspenso e depois voltará para o cargo. Ou seja, além de receber salário esse agente público que praticou ato ilícito ainda continuará a exercer função jurisdicional causando prejuízo a todos nós, potenciais jurisdicionados. Se o objetivo é mudar para pior, a reforma administrativa proposta atingiu bem o objetivo pretendido.

Muita gente está achando que a reforma administrativa acabou com a estabilidade e que isso é uma coisa boa. Bom, a reforma não acaba com a estabilidade. A reforma cria duas categorias de servidores: os que realizam atividades típicas de Estado, que serão estáveis e os que não realizam atividades típicas de Estado, que não serão estáveis. E quem dirá quais carreiras são típicas de Estado? Isso mesmo: a lei. Há que ser muito ingênuo para não antecipar a festa de negociações e trocas de favores que vai ocorrer no parlamento quando chegar a hora de determinar quais categorias de servidores serão beneficiados com a estabilidade. Os que não tirarem a sorte grande na gincana legislativa estarão sujeitos a perseguições, demissões arbitrárias e outras ações que não colaboram em nada para a qualidade do serviço ou para a democracia brasileira.

A reforma dá aos servidores não estáveis um prêmio de consolação: os servidores que não realizam atividades de típicas de Estado poderão acumular com remuneração diferentes cargos públicos. Essa cumulação, hoje, é, para maioria dos servidores, vedada pela Constituição. Se os serviços públicos não funcionam bem com servidores que não acumulam cargos e funções imagina o que vai acontecer quando para a maioria dos servidores ocupar mais de um cargo for uma opção possível.

Para encerrar, é preciso atentar para a forma como a reforma modifica os poderes do chefe do Poder Executivo e, em especial, determina que este poderá alterar cargos públicos e extinguir, transformar e fundir autarquias e fundações públicas. Atualmente, essas ações dependem de lei, se aprovada a reforma, poderão ser realizadas por ato do Executivo. Para ficar bem claro o que isso quer dizer, basta saber que Universidades são autarquias e poderão ser extintas em uma canetada. Agências Reguladoras são autarquias e poderão ser extintas por mera vontade do presidente da República. Em suma, o presidente, os governadores e os prefeitos poderão extinguir entidades que se oponham a eles, poderão encerrar entidades que controlam e fiscalização as ações do Poder Executivo, podendo, dessa forma, manipular, chantagear e reprimir seus opositores políticos.

Dizem por aí que a reforma visa tornar o Estado mais enxuto e eficiente. O que não está escrito na Proposta de Emenda Constitucional, entretanto, é que as mudanças trazidas pela reforma administrativa e mencionadas nesse breve texto não contribuem em nada para uma maior eficiência do Estado. O que a reforma faz – e com muita eficácia – é enterrar o projeto de Administração Pública democrática desenhado na Constituição de 1988, abrindo espaço para o fortalecimento de grupos políticos e para o estabelecimento de privilégios aos mais poderosos. Não é preciso ser clarividente para imaginar que um Estado com mais poder concentrado no Executivo, com agentes não aprovados em concurso público e servidores sem estabilidade que poderão acumular cargos públicos será muito pior que o Estado que temos hoje.

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