Reforma do IPE é aberração
IPE Saúde: ‘Espero que os deputados pensem com justiça e não aprovem essa aberração’
Marly Cambraia tem vivido dias entre a apreensão e a revolta. Professora estadual aposentada há 14 anos, atualmente paga em torno de R$ 500 por mês para o Instituto de Assistência à Saúde dos Servidores Públicos do RS (IPE Saúde), tendo como dependentes sua filha, de 30 anos, e o marido, de 61 anos. Se o projeto de reformulação do IPE Saúde elaborado pelo governador Eduardo Leite (PSDB) for aprovado na Assembleia Legislativa, o gasto mensal subirá, segundo suas contas, para cerca de R$ 1.200. A perspectiva de aumento de mais de 100% a leva a chamar de “absurda” a proposta do governo estadual.
“Só diminui o nosso salário. Gasto mais de mil reais por mês em remédio para mim e para minha filha, que tem problema de saúde. Como ter qualidade de vida assim?”, questiona.
Ela reclama que o IPE sempre foi um plano que valoriza o idoso, baseado no princípio da solidariedade ao não cobrar mais caro das pessoas de mais idade e que contribuíram a vida inteira. Agora, com as mudanças propostas por Leite, essa balança irá se inverter. Conforme as novas regras, funcionários públicos jovens e com maior renda pagarão menos do que pessoas idosas com renda menor.
“Trabalhei 60 horas por semana para ter uma aposentadoria e agora vão corroer o meu salário”, critica, enfatizando os quase sete anos que os professores, e o funcionalismo público em geral, não recebe aumento, enquanto a inflação no período foi superior a 50%. “Ele quer que a gente pague a conta”, afirma, em referência ao governador Leite, autor do projeto de reestruturação.
Moradora de Porto Alegre, Marli lembra que o IPE já foi um bom plano de saúde. Foi. Nos últimos anos, as sucessivas crises financeiras, os atrasos nos pagamentos de médicos e hospitais e a própria defasagem da tabela de remuneração dos médicos, fez com que muitos profissionais deixassem de atender pelo IPE.
Na última terça-feira (23), médicos credenciados ao IPE Saúde decidiram, por unanimidade, estender a convocação para paralisação por tempo indeterminado. Iniciada em 10 de abril, o movimento é uma reação à falta de reajustes há 12 anos na tabela de valores pagos à categoria por consultas e procedimentos pelo IPE Saúde. Além da paralisação, entidades médicas do Rio Grande do Sul — como o Sindicato Médico do RS (Simers), Conselho Regional de Medicina (Cremers) e Associação Médica do RS (Amrigs) — estão convocando os profissionais a optarem pelo licenciamento temporário ou pelo descredenciamento do IPE Saúde.
“É só maldade com o funcionalismo e com os professores. Isso de cobrar dos baixos salários é um absurdo… O IPE era um plano bom”, comenta.
O último eixo envolve o financiamento do IPE. O plano apresentado visa a manutenção do princípio da paridade entre Estado e servidores, com aumento da contribuição patronal, havendo aumento do valor pago pelo segurado, a contribuição de dependentes e a consideração da faixa etária dos segurados como elemento limitador para as mensalidades. Isso ampliaria a alíquota dos titulares de 3,1% para 3,6% e a alíquota do Estado no mesmo patamar. O valor acrescido por dependente seria um percentual definido a partir do valor de referência do titular do plano, conforme a idade do dependente. Há ainda o aumento na coparticipação em exames e consultas, que passaria de 40% para 50%.
A proposta entregue na Assembleia quase um mês depois, no dia 18 de maio, trouxe mudanças discutidas em reuniões com deputados e representantes dos servidores públicos estaduais e da categoria médica. Entre as alterações, está uma trava global que limita a contribuição dos servidores em 12% da remuneração, qualquer que seja o número de dependentes na família.
A tabela de contribuição para os dependentes também foi atualizada. Houve uma redução de valores em quase todas as faixas etárias em relação à primeira proposta. A faixa de cobrança para dependentes com menos de 24 anos, de R$ 49,28, foi mantida. Nas demais faixas, em que os dependentes pagariam 40% do valor de referência para titulares, o percentual foi reduzido para 35%. Contudo, a nova proposta mantém o aumento da alíquota de 3,6% para os titulares, com a contribuição paritária do Estado aumentando o mesmo patamar. O aumento da alíquota é uma das principais reclamações dos servidores estaduais quanto à proposta.
O projeto está tramitando em regime de urgência, o que significa que começará a trancar a pauta de votações da Assembleia 30 dias após a data de sua apresentação. Em caso de aprovação, o novo modelo de contribuição passaria a valer para os titulares na folha salarial seguinte à sanção da lei. Para os dependentes, depois de 90 dias após a sanção.
Para ele, a intenção do governo estadual é dificultar financeiramente os servidores de menor renda em se manterem no IPE Saúde, obrigando-os a migrarem para o Sistema Único de Saúde (SUS). “Essas pessoas não vão conseguir acessar o serviço de saúde e isso é de pleno conhecimento do governo. Há a intenção de que essas pessoas se encaminhem pro SUS”, afirma Leiria.
Também conselheiro da União Gaúcha em Defesa da Previdência Social e Pública (UG), ele critica que o governo estadual veja a situação do IPE Saúde apenas como uma tabela financeira, sem propor mudanças e melhorais no atendimento de saúde, como projetos de telemedicina e medicina preventiva. “É tão somente um reducionismo numa planilha financeira. É disso que se trata e, neste sentido, é muito pobre a proposta.”
O auditor público externo do TCE-RSO pondera que governador é um político que mobiliza, no plano dos simbolismos, argumentos legítimos de que se preocupa com questões da mulher e com a população negra, mas não passa do plano simbólico para o material. Quando chega no plano material, avalia Leiria, o governador utiliza a mesma política de exclusão e retirada de quem têm menos no orçamento.
“Ele vai colocar uma aparência técnica dizendo que a discussão é sobre números, mas o governo é o principal inadimplente do sistema, retém o IPE Saúde nos precatórios e não repassa desde 2010. A paritária da pensionista de 2015 a 2018, ele só paga o principal, não paga os juros e a mora. Ele se apropria dos imóveis do IPE Saúde e, pela legislação, a receita desses imóveis deveria ser repassada para o IPE Saúde e ele não repassa. Essa inadimplência vai se agravando”, afirma.
A razão de tamanha preocupação passa pelo contexto dos sete anos sem reajuste salarial real, da reforma administrativa aprovada pelo governo Leite em 2020, que aumentou contribuições do servidor, e da alta inflação que afeta o brasileiro nos últimos anos.
Ele também reclama da queda da qualidade do serviço do IPE Saúde nos últimos anos, com muitos médicos se descredenciando do plano. Em que pese a piora do serviço, os descontos no contra-cheque nunca pararam.
“Se o governo não repassa, os médicos não recebem. E se os médicos não recebem, eles começam a cortar as consultas. Então a gente está pagando, mas não está tendo o atendimento”, explica.
Por sorte, diz ele, nunca precisou de uma cirurgia ou internação, tão pouco sua esposa, que é sua dependente. Se tivesse precisado, teme pelo que poderia acontecer. A esposa, inclusive, há anos consultava com uma cardiologista para acompanhar um problema de sopro no coração. Não faz muito, a médica se descredenciou do IPE Saúde e agora o casal está à procura de outro profissional.
Oliveira classifica como uma “desumanidade” a proposta do governo de cobrar dos dependentes. “Além de termos dificuldade na consulta, agora querem taxar o dependente. E taxar duramente, não é só uma contribuição simples. Imagina… paguei a previdência por 42 anos e agora sigo pagando bem mais do que quando era da ativa… Oito anos sem reajuste e só desconto, desconto, desconto. Sinceramente, acho que o governador está querendo acabar com os aposentados”, lamenta o ex-funcionário da Secretaria Estadual da Saúde, aposentado há cinco anos.
Assim como a professora aposentada Marly Cambraia, ele também reclama da proposta do governo de cobrar menos de quem é jovem e tem maior salário, e mais de quem é idoso e tem rendimento menor. O IPE Saúde, antes solidário, avalia ele, não existirá mais se a proposta do governo for aprovada.
“Chega a ser piada isso daí”, critica Oliveira. “O governo não repassa os valores e quer botar toda a dívida em cima de nós, dos servidores públicos. Espero que os deputados pensem com justiça e não aprovem essa aberração.”