Refundar a educação é repensar a escola
José Pacheco: ‘Para refundar a educação, não teremos de repensar a escola?’
Em entrevista ao Porvir, o renomado educador português fala sobre ensino remoto, retorno às aulas e mudanças nos currículos brasileiros
por Ana Luísa D'Maschio - 22 de dezembro de 2021
Olhares curiosos e ouvidos atentos costumam acompanhar José Pacheco por onde ele passa. Todos querem ouvir suas experiências e entender como o português, de 70 anos, criou a Escola da Ponte, referência mundial quando o assunto é educação transformadora. Localizada em São Tomé de Negrelos, distrito do Porto (Portugal), por lá autonomia é palavra-chave. Tudo é compartilhado. Não há salas de aula ou disciplinas: os alunos se organizam para estudar e pesquisar o que lhes interessa, compartilhando com os colegas e avisando os professores quando se sentem prontos para serem avaliados. Trata-se da “escola com quem sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir”, conforme garantiu o escritor e professor Rubem Alves (1933-2014).
Rubem Alves, aliás, é uma das grandes referências de José Pacheco. Paulo Freire, Anísio Teixeira, Milton Santos e Darcy Ribeiro, entre outros brasileiros, também estão na lista de inspirações do educador, que mora no Brasil desde 2005 e, atualmente, é colaborador do projeto EcoHabitare. Diariamente, publica em seu site e suas redes sociais pílulas de textos sobre “Novas histórias do tempo da velha escola”, nos quais se transporta para o futuro a fim de observar a escola de hoje.
No intervalo de um dia tomado por eventos na Camino School, em São Paulo (SP), Pacheco conversou com o Porvir sobre ensino remoto, mudanças nas políticas curriculares brasileiras e o futuro da escola. Critica veementemente o Novo Ensino Médio e garante que pouco aprendemos com a pandemia: “Uma aula online é tão inútil quanto uma aula presencial, porque sabemos que aprendemos uns com os outros mediados pelo mundo, na perspectiva da cidade educativa freiriana”. Contudo, afirma que há motivos para a esperança. Confira:
Porvir: Em recente entrevista, o senhor disse que a pandemia abalou o sistema educacional, demonstrando que escolas não são prédios, que escolas são pessoas. O que aprendemos com a pandemia?
José Pacheco: É bem verdade que escolas são pessoas. Já o dizia, há quase meio século. Mas, ao que parece, nem isso aprendemos durante a pandemia. Três subsistemas sociais deveriam rever processos: o sistema político, o sistema econômico e o educacional. Um vírus nos ofereceu uma oportunidade de refletir e mudar de rumo. Com desgosto, observo que deixamos escapar mais uma oportunidade de mudança e inovação.
Porvir: O senhor acredita no modelo de ensino remoto? O que o deixou mais preocupado durante esse período?
José Pacheco: Para além do “regresso às aulas”, algo bem mais grave aconteceu. Instituições educacionais despediram professores e compraram robôs. É assustador pensar na possibilidade de a inteligência artificial vir a controlar a cognição (e a emoção) humanas. Hoje, quando um bebê chora ou grita, já não se usa chupeta para o calar, mas um tablet. Temo que muitos jovens se convertam em “monstrinhos de tela”. Com ou sem novas tecnologias de informação e comunicação, a escola precisa ser reinventada. Mas do modo como as novas tecnologias estão sendo introduzidas, temo que se transformem em panaceias, que apenas sirvam para congelar aulas em computadores, e que os alunos, acostumados ao imediatismo e à velocidade dessas tecnologias, acriticamente a consumam, sem resquícios de cooperação com o aluno vizinho, dependentes de vínculos afetivos precários, estabelecidos com identidades virtuais.
Porvir: Por quê?
José Pacheco: A internet é generosa na oferta de informação. Basta clicar para repetir, até que a matéria seja compreendida. Tudo aquilo que um professor pode “ensinar” em uma aula está plasmado, de modo mais atraente, na tela de um computador. Os professores do “futuro” irão manter-se ancorados em aulas obsoletas servidas por lousas digitais, ou irão atualizar-se? Irão replicar aulas congeladas no YouTube e em tablets, ou irão usar o digital ao serviço da humanização da escola?
José Pacheco: A educação carece de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver. Requer que se transforme uma instituição obsoleta numa escola que a todos e a cada qual dê oportunidades de ser e de aprender. As mudanças deverão partir, simultaneamente, das escolas e do poder público. E são precisos muitos anos para que se consolidem. As mudanças carecem de continuidade e de avaliação. Nos últimos anos, apesar da profusão de tentativas de reforma, programas, projetos, congressos, cursos e afins, não se logrou melhorar a qualidade da educação nacional. Mas o Brasil tem Paulo Freire e tudo aquilo que precisa. E esse desiderato será alcançado quando as escolas deixarem de estar cativas de um modelo educacional obsoleto e de uma gestão burocratizada, na qual os critérios de natureza administrativa se sobrepõem a critérios de natureza pedagógica.
Porvir: Em postagem no Instagram, o senhor fala da escola como “armazém de alunos”. O que é preciso para que esse armazém deixe de existir? Isso foi reforçado pelas aulas online, ou é uma visão que o senhor já tinha?
José Pacheco: Entrados no século 20, numa América do Sul imersa no analfabetismo, um general de nome Bolívar “importou” o Método Mútuo de Lancaster. E, embora animado das melhores intenções, Pedro II também expôs o Brasil a essa mortífera pandemia educacional. Ao longo de duzentos anos, milhões de vidas jovens foram destruídas pela escola instrucionista, num holocausto educacional, que pedagogos escolanovistas denunciaram, cognominando a escola da aula e da série “invenção do diabo”. Com ou sem paliativos, uma aula online é tão inútil quanto uma aula presencial, porque sabemos que aprendemos uns com os outros mediados pelo mundo, na perspectiva da cidade educativa freiriana. Eu pugno por uma educação de todos, “desencaixotada”, agente de transformação social, que assegure o direito universal de acesso e de sucesso educacional.
Porvir: Até que ponto a tecnologia foi capaz de continuar promovendo a autonomia? Em que acertamos e em que falhamos?
José Pacheco: Fala-se de autonomia, de protagonismo juvenil, afirma-se a necessidade de transformar o aluno em sujeito de aprendizagem, enquanto se mantém hegemônico o modelo instrucionista, centrado no professor. Porém, há mais educação além da escola que, infelizmente, ainda temos. E me é dado ver que, com ou sem “tecnologia”, professores criam núcleos de projeto, respeitam quem não quer mudar e requerem autonomia. Um projeto humano é um projeto coletivo. Há 45 anos, ajudei a criar uma equipe [da Escola da Ponte]. Apesar das críticas maledicentes, que nos atingiam e perturbavam, guiados pela intuição e pela amorosidade, fomos introduzindo alterações, a partir das nossas dificuldades de ensinagem. Passámos de uma cultura de solidão para uma cultura de equipe, de corresponsabilização. Essa transformação, essa reelaboração da nossa cultura pessoal e profissional custou tempo e sofrimento. Mas, fomos a primeira escola a celebrar com o Estado um contrato de autonomia.
Porvir: O modelo de escola que o senhor defende preza muito pela autonomia e protagonismo do estudante. Como foi a experiência de escolas com esse perfil nos últimos dois anos?
José Pacheco: O fenômeno da sequencialidade regressiva permite que o ensino médio e a universidade (através de um malfadado vestibular) determine e perverta os objetivos do ensino fundamental. Contribui-se para a elitização acadêmica e o insucesso escolar, assumido como mecanismo de discriminação e exclusão social. Mas a nova educação do mundo está no Brasil, no sul. A escola do Projeto Âncora apontou novos rumos. A Escola Aberta de São Paulo o retomou. E centenas de projetos surgiram, entretanto. Temos motivos para esperançar.
Porvir: O retorno às aulas presenciais não tem sido fácil. Para o ano que vem, que recomendações faria para o planejamento das escolas, visto que o Brasil vai começar o Novo Ensino Médio?
José Pacheco: Esse “Novo Ensino Médio” já nasce velho. Os discípulos do velho e esclerosado modelo educacional perdem-se em tentativas de reforma. Enquanto a obsessão uniformizadora e seletiva da escola vem sendo questionada por muitos “especialistas”, insiste-se em acrescentar camadas de tinta nova em velhos palimpsestos, nos quais os registros primitivos não se apagaram. Até mesmo a euforia da introdução das novas tecnologias de informação e comunicação nas escolas concorre para a sedimentação de velhas práticas. Que razões sustentam a reprodução de um modelo de escola gerador de abandono intelectual e moral? Como justificar a manutenção de referências teóricas com mais de um século? Até quando se insistirá em equívocos, naturalizações e ideias feitas?
Sabemos que o caos precede a mudança e que o Brasil passa por um período de caos político e de inversão de valores. Mas, a crise educacional instalada poderá ser, também, geradora de oportunidades. Façamos a nós mesmos esta pergunta: para refundar a Educação, não teremos de repensar a escola?
https://porvir.org/jose-pacheco-para-refundar-a-educacao-nao-teremos-de-repensar-a-escola/