Revolução farroupilha
Revolução farroupilha ou Guerra Civil Farroupilha?
Transparece, às vezes, que o setor progressista naquela conjuntura não era os farrapos e, sim, os imperiais
por Giovanni Mesquita 18/09/2025
Giovanni Mesquita (*)
A primeira pergunta sobre esse tema talvez deva ser: porque nós os gaúchos insistimos em encher a paciência dos nossos irmãos do resto do país com esse nosso assunto, tão regional, tão fórum íntimo? A Revolução Farroupilha, ou seja, lá como se queira nominar o evento, não foi um movimento regional, ele estava envolvido no ciclo de revoluções republicanas da América do Sul, do Prata e do Brasil. Ela não foi uma andorinha solitária e pampiana.
Quando hoje, por algum caminho torto, a esquerda se ergue contra os farroupilhas, todas as coisas em relação a eles começam a ser postas na presiganga do cancelamento. Mas hoje o que anda na cabeça, anda nas bocas é: não foi revolução coisa nenhuma. Não foi?
De revolutionibus à revolução: nas pegadas do termo
O termo revolução se banalizou no decorrer dos séculos XIX e XX tornando-se sinônimo de qualquer movimento armado de alguma expressão.
A palavra teve seu uso mais divulgado pela primeira vez no campo da astronomia. Ela compõe o título do importante livro de Nicolau Copérnico sobre a disposição dos movimentos dos astros na galáxia: De revolutionibus orbium celestium (Sobre as Revoluções das Esferas Celestes). Essa designação, revolução, se referia, basicamente, ao que hoje chamamos de rotação. O movimento em que um corpo celeste perfaz uma volta completa em torno de seu eixo voltando ao ponto inicial. O termo foi inaugurado como jargão político na restauração da coroa inglesa, 1688/89, na fase termidoriana do movimento comandado por Cromwell, burguesia e o New Model Army. Nessa oportunidade honrando a ideia de um movimento repetido e incessante de retorno a um mesmo ponto.
Hannah Arendt identificou a data exata de quando pela primeira vez se usou o termo revolução com o sentido de transformação radical de uma sociedade. O autor dessa mutação semântica teria sido o Duque de Liancourt, que, na noite do dia 14 de julho de 1789, anunciou ao Rei Luís XVI o que se passava em seu reino. Luís teria dito “É uma revolta”, e Liancourt lhe corrigira “Não, majestade, é uma revolução”.
O conceito se tornou mais complexo e abrangente com as correntes socialistas a partir do começo do século XIX. Marx, que já trabalhava com essa ideia desde 1844, aprofundou e ampliou o conceito. Até então a revolução era considerada uma ação circunscrita ao campo da política e das ideias. As condições materiais, que as geravam, eram vistas como atrizes coadjuvantes. A dialética materialista do filósofo alemão passou a indicar que o fenômeno, na modernidade, estava diretamente ligado a revolução dos meios de produção. Marx retirava assim da esfera do subjetivismo e dos humores individuais a autoria das forças motrizes que geram e impulsionam os movimentos revolucionários. Para ele, o principal emulador da revolução não era a vontade dos homens, caráter subjetivo, e sim suas necessidades e sua realidade, o que ele chamava de condições objetivas.
Sujeito a “produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade (…) Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência.”
Entretanto, ao contrário do que muita gente pensa ou prega, Marx não concluía dessa nesse raciocínio que seria possível a transformação social sem a intervenção consciente e organizada dos indivíduos.
“Até quando…?” Um Movimento dirigido por latifundiários e charqueadores escravagistas poderia ter cunho revolucionário?
Outro tema, muito analisado pelos marxistas, é o da vanguarda revolucionária. Há algum tempo certos escritores descobriram, não sem certo assombro, que os líderes da revolução farroupilha eram pertencentes a elite rio-grandense, latifundiários, charqueadores, donos de escravizados, etc. Juremir Machado da Silva, notório historiador da praça, “audaciosamente” brada: “Até quando a rebelião dos proprietários será apresentada como uma revolução de todos?” Esse autor impregna a maioria dos seus textos, a respeito do tema, com uma retórica baseada em subjetivismos, moralismo e anacronismo. A exemplo de Tao Golin, movimenta sua crítica com objeto de atacar a visão e os argumentos dos membros do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) e demonstra pouco interesse em aprofundar o conhecimento do próprio tema em questão. Usam o método de questionar pontualmente fatos ou conceitos, ignorando o conjunto dos fatores e o contexto em que estavam inseridos. Ao resumirem os farroupilhas em ricos estancieiros, charqueadores e proprietários de escravos, concluem que estes fizeram o Movimento de 1835 para defender seus interesses econômicos e que não estavam interessados no desenvolvimento da sociedade como um todo. Sobre o primeiro ponto não se deve demorar muito, porque parece óbvio que as pessoas que se envolve em um movimento estão nele para defender seus interesses. A pergunta mais consequente é por que suas reivindicações mobilizaram parcelas tão amplas e diversas da população?
Entre os estancieiros e charqueadores havia caramurus e liberais. As relações econômicas e sociais, como laços de família, são sempre muito importantes na formação de alianças e fidelidades, mas elas não são absolutas e, nesse caso, nem preponderantes. Os seres humanos também são dominados por ideias, ideais e paixões. A realidade não deve ser colocada a serviço da tese. Não há como, nem por que, negar que os setores mais relevantes dos liberais, que no processo da guerra aderiram em massa ao Partido Farroupilha, eram estancieiros, charqueadores proprietário de escravizados. Poderiam eles então estar à frente de um movimento social revolucionário? Segundo o marxismo: sim!
“As massas entram em estado de revolução não com um plano preestabelecido de transformação social, mas com o amargo sentimento de não lhes ser mais possível tolerar o antigo regime. Apenas o centro dirigente da classe possui um programa político, o qual, entretanto, precisa ser confirmado pelos acontecimentos e aprovado pelas massas. […]”
Poucos enfatizam que esses dirigentes também pertenciam a uma burguesia comercial, industrial. Mas não descobriram, até hoje, que o núcleo formador do Partido Farroupilha era, em quase sua totalidade, oriundo dos setores médios urbanos. Eram médicos, advogados, farmacêuticos, cientistas, jornalistas, professores e oficiais e suboficiais de carreira. Devido à baixa densidade populacional do Rio Grande do Sul, algo entre 150 a 200 mil habitantes, mesmo os que possuíam terras eram, por vezes, apenas pobretões com um pátio muito grande. Pois o que produz riqueza não é a terra em si, mas o trabalho aí desenvolvido. A abundância de terras a tornava um produto de baixo valor e até mesmo sem valor comercial, um bem que era fartamente distribuído pelo Estado. A terra só passa ser uma mercadoria, no sentido mais amplo e irrevogável, com a lei nº 601 de 18 de setembro de 1850.
O núcleo dirigente original do Partido Farroupilha era composto pela pequena burguesia, e não por latifundiários, donos de indústria de charque, ou grandes comerciantes. Esses embarcaram na revolução no decorrer da tempestade política que levou ao conflito armado. Esse processo seguiu a lógica proposta “As distintas etapas do processo revolucionário, consolidada pela mudança de uns partidos por outros cada vez mais extremados (exaltados), é sinal a pressão crescente das massas para a esquerda […]”
Marx acreditava que as tarefas econômicas e políticas em pauta na primeira metade do século XIX deveriam, para realizar a implantação plena do sistema capitalista, ser comandadas pela burguesia. O anúncio de sua nova posição, que retirava a condição de liderança revolucionária da burguesia, só ocorreu no Manifesto Comunista de 1848, três anos depois de findada a Revolução Farroupilha. Os que não aceitam que se use para o movimento farroupilha a nomenclatura Revolução, por ser dirigido por membros das elites, não apontam qual o grupo social que poderia assumir a vanguarda de um movimento que eles pudessem nominar Revolução. Os escravizados? Os pequenos camponeses? O proletariado urbano e rural? Talvez, secretamente, esses doutos preferissem que a sociedade esperasse passiva e ordeiramente o advento da industrialização e da república. Esses eventos, por ventura, descenderiam dos céus como uma pomba imaculada do inevitável e pacífico avanço do processo histórico da humanidade? Para alguns desses parece não haver nenhuma diferença entre uma república e um império monárquico. Transparece, às vezes, o contrário, que o setor progressista naquela conjuntura não era os farrapos e, sim, os imperiais. Um célebre historiador desse campo chegou a declarar que, se fosse ele coetâneo desse conflito, estaria ao lado dos imperiais. O curioso é que, em geral, as pessoas que se entendem como esquerda são aquelas que mais fogosamente aderem a essa propaganda retrógrada.
Que se saiba, nunca um movimento envolvendo significativas comunidades, como o que começou em 1835, conseguiu se manter por largo tempo sem o apoio de parte significativa dessas mesmas comunidades. Não é possível compreender como um movimento de minoria pudesse sobreviver tanto tempo tendo contra si as tropas do Império e a animosidade de grande parte da população.
Concluindo: se pudermos resumir que qualquer movimento que leve a uma transformação profunda da sociedade é revolução; se mesmo uma radical mudança da forma de governo (ex. monarquia para república) ou nas relações de produção (mão-de-obra escravizada para mão-de-obra livre) pode ser considerada dessa mesma forma, então por que deveríamos negar ao movimento republicano rio-grandense denominação de revolução? VIVA A REVOLUÇÃO FARROUPILHA!!!
(*) Historiador e museólogo
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