Sartre e o golpe de 64

Sartre e o golpe de 64

Sartre e o golpe de 64: o Brasil entre os interesses da burguesia

LUCAS RODRIGUES DA FONSECA LOPES*

Foto: João Paulo Fiorenza

 

Após sua experiência enquanto prisioneiro dos nazistas, na França ocupada, Jean-Paul Sartre passa a refletir sobre seu próprio sistema filosófico assumindo novas posições políticas a respeito de sua condição intelectual (ALMEIDA, 2018). Assim, torna-se interesse do filósofo observar os contextos de guerras e conflitos vividos pelos países vítimas do imperialismo. E o Brasil não fica de fora de suas atenções, em 1970, ele publica seu único texto sobre o país, um trabalho em solidariedade às vítimas do regime militar, intitulado: “O povo brasileiro sob o fogo cruzado dos burgueses” (Le peuple brésilien sous le feu croisé des bourgeois), presente na obra Situations VIII.

Nesse texto, Sartre afirma que a instauração do regime militar no Brasil não devia ser tomada como um simples acidente no percurso da democracia, mas como um destino possível de muitos países europeus. Segundo ele, a ascensão desse regime foi consequência do equívoco cometido pela esquerda brasileira em apoiar uma “burguesia nacionalista” para se opor ao imperialismo. Pois “não devemos conceber que haja uma boa burguesia, que seria a nacionalista e uma má, cúmplice de um imperialismo, na verdade, o que há é apenas uma única burguesia cuja atitude varia de acordo com seus interesses de momento.” (SARTRE, 1973, p. 220). O Brasil desde seu período colonial tem sido conduzido pela burguesia em direção ao capitalismo (DE ALMEIDA, 2011). De acordo com Sartre, o que o setor nacionalista da burguesia fez foi provocar uma crescente pauperização do país, visto que a sua prosperidade coincidia com as crises econômicas. O povo com um poder aquisitivo reduzido voltava-se para os produtos nacionais. Afinal, com o mercado interno nas mãos desses burgueses, os bens de consumo que podiam ser importados do exterior passaram a ser substituídos pelos produtos de suas empresas (SARTRE, 1973). Ademais, essa burguesia alimentava o desemprego no país para obter uma redução nos gastos de produção. Logo, o efeito dessas medidas foi tornar a economia uma presa fácil para o imperialismo norte-americano. Nesse momento a burguesia ligada ao imperialismo começou a ganhar seu espaço.

Demonstrando um grande conhecimento sobre a realidade e a história do país, Sartre aponta que essa tensão entre os dois partidos da burguesia é uma luta datada desde 1945, na qual o golpe de 1964 seria apenas o resultado. Ou seja, um conflito que perpassa por 1945 com a caída de Vargas, seu retorno em 1951, seu suicídio em 1954, a tentativa frustrada para impedir Juscelino Kubistchek de tomar o poder, e a demissão forçada de Quadros em 1961 (SARTRE, 1973). Esse conflito apesar de terminar muitas vezes com vantagens para a burguesia nacionalista, por outro lado, não impediu a ampla implantação de investimentos estrangeiros no país, por conseguinte, em 1964 os militares não tiveram problemas em dar seu golpe de estado com o apoio dos Estados Unidos. Assim, liquidando com a burguesia nacionalista, uma das primeiras medidas adotadas pelo governo militar para atender as exigências do capitalismo norte-americano foi reduzir o crédito, obrigando as empresas nacionais a vender-se ou associar-se ao capital estrangeiro. Para o filósofo, isso apenas demonstrou a reconciliação entre os dois ramos da burguesia, provando que sempre houve somente uma única burguesia, mas com interesses flutuantes. Além disso, durante o governo militar, houve a promulgação de um decreto que fornecia uma garantia aos investimentos estrangeiros, de modo que autorizava as empresas estrangeiras a fixarem o montante das perdas sofridas e pedirem ao governo o reembolso.

Enquanto os burgueses e os imperialistas extraiam os recursos do país, o governo exercia um papel de manter o povo em mínima resistência através de repressões constantes. “No Brasil, à época da ditadura o exército foi o “braço armado” do imperialismo norte-americano” (ALMEIDA, 2018, p. 71). Nas palavras de Sartre: “os brasileiros confiam seus próprios soldados aos norte-americanos para que os norte-americanos os ensinem a atirar sobre o povo brasileiro. O exército serve cada vez menos para preparar a defesa contra um eventual agressor exterior, e cada vez mais para reforçar a repressão interior” (SARTRE, 1973, p. 222).

Sartre vê na esquerda brasileira um duplo exemplo a ser extraído. Um exemplo negativo sendo antes de 1964, em que ela contou com a aliança do nacionalismo burguês com as forças populares para combater o imperialismo, mas foi traída e se enganou. E um exemplo positivo, pós 1964, na qual, a partir desse momento compreendeu que o único modo de combater o imperialismo seria através da luta armada. Com seu pensamento alinhado ao de Carlos Marighela, Sartre acredita que a união de forças contra o imperialismo não devia restringir-se apenas ao Brasil, mas expandir-se aos outros países da América do Sul. “É necessário, pois, realizar a unidade da luta de uma América oprimida, a do Sul, contra a outra América opressora, a do Norte” (Idem, p. 224). Além do mais, julgava os acontecimentos ocorridos no Brasil como lições para pensar a França. “O combate heroico que os brasileiros enfrentam debaixo de nossos olhos deve nos incitar a refletir sobre nossa própria situação. Há também entre nós uma burguesia nacionalista e há igualmente os investimentos norte-americanos” (Idem, Ibidem). Ele compara as duas burguesias brasileiras com os governos de Charles de Gaulle e de Pompidou, sendo um nacionalismo vaidoso de um lado e do outro uma posição favorável para a entrada de capitais norte-americanos.

Para Sartre, apoiar o povo brasileiro em sua luta representava mais que um dever político. “Sustentar os revolucionários brasileiros em sua luta não é então somente nosso dever: concerne também a nosso interesse, concerne a nossa liberdade” (Idem, Ibidem).

 

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Rodrigo Davi. Sartre e o terceiro mundo. São Paulo: Edusp, 2018.

DE ALMEIDA, Silvio Luiz. Sartre: Direito e Política, Ontologia, Liberdade e Revolução. São Paulo: Universidade de São Paulo (Tese de Doutorado), 2011.

SARTRE, Jean-Paul. El pueblo brasileño bajo el fuego cruzado de los burgueses. In Situations VIII – Alredor de 68. Buenos Aires: Losada. 1973.


* LUCAS RODRIGUES DA FONSECA LOPES é Professor de Filosofia, graduado em Filosofia pela UEM, mestre em Filosofia na área de Fenomenologia e Estética pela UEM, e membro do GT de Filosofia Francesa Contemporânea da ANPOF.

 

https://espacoacademico.wordpress.com/2020/07/15/sartre-e-o-golpe-de-64-o-brasil-entre-os-interesses-da-burguesia/?fbclid=IwAR0Ev-blaAZTgV1fNWfpe6J6aRmLnMKK2xPxe0hMJWVlUWQVk6PUpEUE1DQ




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