Seguiremos cegos ao outro?
Seguiremos cegos ao outro?
Salus Loch, jornalista
O alto-falante acoplado ao teto do carro cortava o silêncio da avenida vazia dando seu recado em tom ameaçador:
- Não saiam de casa. Conforme decreto do Governo, não saiam de casa! Lamentamos ter sido forçados a exercer energicamente nosso dever de protegê-los na crise que atravessamos. O Governo está ciente de suas responsabilidades e espera que todos também estejam como bons cumpridores de suas obrigações...
A mensagem parecia ter sido reproduzida direto do ‘altifalante’ do manicômio que recebera os cegos de José Saramago, em seu ‘Ensaio sobre a cegueira’, obra escrita há um quarto de século.
Mas, não. A ordem foi dada no domingo, 22 de março de 2020, numa cidade do interior do Rio Grande do Sul. Imagino que tenha se repetido, com variações, país afora. Mundo afora.
Ameaçados pela pandemia do novo coronavírus, estamos, neste momento, forçosamente trancafiados em casa com nossos medos. Estamos vivendo a distopia de Saramago - o que explica que as vendas do livro tenham estourado.
Presente
O primeiro escritor em língua portuguesa a ganhar o Nobel de Literatura (1998), que ao fim da vida dizia se preocupar mais com o ‘não estar’ do que com a morte, revela-se presente, atualíssimo e necessário, uma década após o seu passamento.
Verdadeira face
Isso porque a ‘cegueira branca’ descrita no livro nos faz refletir em tempos de covid-19, líderes atabalhoados e alto-falantes ameaçadores pelas ruas.
Situações extremas (como o Brasil deve enfrentar nos próximos dias), nos permitem perceber a verdadeira face de alguém, já ensinava o gajo que alertava: somos cegos da razão e, em regra, só a utilizamos para destruir a vida.
Somos individualistas, indiferentes, intolerantes e egoístas - características que afloram quando voltamos ao estado primitivo. Quando falta algo, seja segurança ou comida, poucos se juntam para equacionar o problema, fazendo valer a regra do ‘antes eu do que você’. Os milhares que denunciaram judeus aos alemães e colaboracionistas durante o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), nos fazem lembrar disso.
Exceções, claro, existem como o próprio Saramago mostra narrando a bravura da ‘mulher do médico’, única a enxergar num mundo mergulhado em um ‘mar de leite’.
Vulneráveis
Foi contra sentimentos menos nobres - e tão comuns - que o Ensaio sobre a cegueira foi concebido.
Com uma narrativa pesada e crua, Saramago mostrou como somos, também, vulneráveis - e por nós devemos incluir governos e o mercado, que, embora parecessem sólidos, não resistiram, na obra, à ‘selva branca’. Ruíram todos.
Ruiremos cá também?
Por gerações
É difícil prever com exatidão. Além das milhares de mortes e de consequências econômicas que devem ser sentidas por anos, marcando gerações, temos poucas certezas do que virá depois. E, sim, teremos um depois - graças ao esforço e competência de cientistas, médicos, enfermeiros, entregadores de comida, bombeiros, motoristas de caminhão, biólogos, policiais militares, agricultores e tantos outros, até a combatida imprensa, responsável por levar uma das principais defesas contra o coronavírus, a informação.
Sociólogos e pensadores também têm papel importante. Um deles, o italiano Domenico Di Masi, aconselha que mudemos a lógica mercadista da economia para criarmos ‘modos mais racionais e proveitosos para o mundo contemporâneo’.
Loucos por papel higiênico
Enfim, se a ordem do momento é para que fiquemos em casa - o nosso manicônio, numa analogia com o Ensaio -, a ordem que nos regerá, possivelmente a partir de setembro quando se prevê uma espécie de volta à ‘normalidade sanitária’, dependerá do que queremos enquanto humanidade e de que como nos comportaremos até lá.
Se tal qual animais tarados por rolos e rolos de papel higiênico ou por remédios não testados vendidos como curas milagrosas (colocando em risco aqueles que realmente precisavam da droga para tratamento), ou como seres responsáveis, apesar do turbilhão de incertezas. Aqui, entenda-se a responsabilidade de ter olhos quando os outros o perderam. Liderar com lucidez, empatia e também com cooperação (como diz o historiador e escritor Yuval Harari), compartilhando informações científicas confiáveis e a solidariedade em escala global, a fim de alcançar os melhores resultados possíveis para famílias, empresas, cidades, estados e nações.
Seguiremos cegos?
Os próximos dias podem se assimilar aos trechos mais duros do livro de Saramago, mas precisaremos enfrentá-los cientes de que, cedo ou tarde, teremos que responder: seguiremos cegos ao outro?
Concluo utilizando uma das sentenças de fechamento do Ensaio, ‘Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que vêem; cegos que, vendo, não vêem’.
Eis uma bela mensagem para rodar nos alto-falantes.
Caderno de Sábado do Correio do Povo - 28.03.2020