Seis anos de ataques aos trabalhadores

Seis anos de ataques aos trabalhadores

Seis anos de ataques aos trabalhadores

ENTREVISTA ALEXANDRE HAUBRICH

Por César Fraga / Publicado em 9 de setembro de 2022

“Muitas das emendas ao texto original (das reformas), inclusive, foram redigidas diretamente nas sedes das entidades empresariais e apenas assinadas pelos parlamentares que as apresentaram”.
Foto: Bruna Andrade

O jornalista Alexandre Haubrich está lançando o livro Direitos Golpeados – Os ataques aos trabalhadores brasileiros de 2016 a 2022, pela editora Insular, no qual analisa o comportamento das grandes empresas de comunicação na cobertura e como interessados diretos nas reformas trabalhista e da Previdência, além de sucessivos ataques à legislação trabalhista. Ele conversou com o Extra Classe sobre a obra e avalia como, durante os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, foram sistematicamente retirados os direitos dos trabalhadores. Para Haubrich – que se especializou no tema a partir de sua tese de doutorado há dois anos –, “os quatro anos de governo Bolsonaro tiveram momentos de maior ou de menor aceleração do desmonte de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, porém, desde o início, representam o ponto central do projeto de país defendido por ele”. Alexandre Haubrich é jornalista, doutor em Comunicação e Informação pela Ufrgs e, também, escreveu os livros Mídias Alternativas – A Palavra da Rebeldia (Insular) e Nada será como antes – 2013, o ano que não acabou na cidade onde tudo começou (Libretos)

Extra Classe – De acordo com a sua observação, quais são os principais grupos econômicos que financiaram e financiam as reformas e demais iniciativas que retiram os direitos dos trabalhadores?
Alexandre Haubrich – Especificamente na minha pesquisa sobre a reforma trabalhista de 2017, identifiquei que a construção do debate e dos embates em torno desse projeto foi conformada a partir de dois grandes grupos. Um deles, vinculado aos trabalhadores, reunia sindicatos, centrais sindicais, movimentos populares, partidos de oposição, mídia alternativa e alguns outros atores da sociedade civil, e se posicionava contra a reforma e em defesa dos direitos. Por outro lado, tínhamos o grupo vinculado ao capital, com entidades representativas dos grandes empresários, partidos governistas, grande mídia, e que não apenas defendeu, como construiu a reforma.

EC – E os grandes grupos econômicos?
Haubrich – O capital e seus diferentes braços foram os artífices daquela reforma, como já foram do golpe que retirou Dilma Rousseff (PT) da Presidência justamente com o objetivo de abrir as comportas e acelerar o desvio do Estado em direção aos seus interesses. Basta ver o documento que a Confederação Nacional da Indústria (CNI) apresentou pouco depois de Temer assumir interinamente, “119 propostas para a competitividade com impacto fiscal nulo”, que já continha a linha da reforma trabalhista que seria aprovada depois. Lógicas muito semelhantes apareceram depois com as outras reformas e propostas das quais trato no livro.

EC – De que forma os agentes do capital agem no Parlamento para fazer aprovar as reformas?
Haubrich – No caso específico da reforma trabalhista – mas, mais uma vez, podemos extrapolar essa lógica para as demais propostas que interessam de forma central ao capital – o que vi na minha pesquisa foi uma atuação muito irmanada entre os diferentes poderes: poder político, poder econômico e poder midiático estiveram juntos no golpe, na reforma trabalhista, na reforma da Previdência, na reforma administrativa e nos demais temas que tratam das relações capital x trabalho. Muitas das emendas ao texto original, inclusive, foram redigidas diretamente nas sedes das entidades empresariais e apenas assinadas pelos parlamentares que as apresentaram. Além disso, pressionaram o Congresso por meio de painéis, reuniões e outras estratégias as mais diversas. O mesmo, é claro, fizeram os atores contrários à reforma. Mas estes não foram ouvidos, não tiveram suas reivindicações contempladas na forma como o projeto avançou. Chamo isso de “impermeabilidade seletiva” do Estado: apenas as demandas do capital conseguem adentrar aos espaços decisórios.

EC – Nossa democracia representativa é falha, considerando que privilegia o lobby do grande capital, com pouca representação para interesses de trabalhadores?
Haubrich – Bom, aí entramos em um problema mais amplo, que é toda a construção do sistema político brasileiro, com uma grande gama de partidos fisiológicos, com uma mídia hegemônica que silencia os trabalhadores e com a tragédia que é o financiamento privado das campanhas. Poderíamos ir mais a fundo e discutir a própria democracia representativa em contraposição à inclusão de mais mecanismos de democracia direta. Mas, mesmo que fiquemos mais na superfície, é fácil identificar problemas como os que citei anteriormente. A verdade é que os trabalhadores e as trabalhadoras são sub-representados no Parlamento, mas também na mídia. As centrais sindicais, por exemplo, que, em tese, representam o conjunto dos trabalhadores, só conseguem falar em seus próprios veículos de mídia, com exceção dos momentos em que são chamadas apenas para contrapor um consenso que já impera nas páginas dos jornais ou nos canais de televisão e nas emissoras de rádio e que são favoráveis à precarização do trabalho como forma de ampliar a margem de lucro do grande empresariado.

EC – Os sindicatos e as centrais são boicotados na grande mídia?
Haubrich – A presença dos trabalhadores na mídia hegemônica é basicamente marginal. Além disso, o problema da sub-representação da classe trabalhadora no Parlamento e os troca-trocas gerados pelo financiamento privado das campanhas abrem as portas diretamente para que os interesses dos empresários prevaleçam. Vivemos uma aceleração desse processo com Michel Temer e, depois, com Bolsonaro, com governos que se vinculavam diretamente a esses interesses e construíram, ombro a ombro com o poder econômico, as reformas que vêm jogando a maioria do povo brasileiro na pobreza e na miséria.

“A presença dos trabalhadores na mídia hegemônica é basicamente marginal. Além disso, o problema da sub-representação da classe trabalhadora no Parlamento e os troca-trocas gerados pelo financiamento privado das campanhas abrem as portas diretamente para que os interesses dos empresários prevaleçam”

Foto: Bruna Andrade

EC – De que forma os meios de comunicação aderiram às reformas de modelo neoliberal, leia-se, a Reforma da Previdência e a Trabalhista? Era comum, por exemplo, na TV Globo e GloboNews a utilização do bordão “reformas necessárias” a cada menção a elas, mesmo em espaços que deveriam ser de informação. Que outros exemplos você destacaria?
Haubrich – Durante boa parte do período em que o Brasil esteve sob a Ditadura Militar, os grandes jornais, que haviam apoiado o golpe de 1964, fizeram uma oposição aguada ao governo. Criticavam a tortura e a censura, mas não questionavam o projeto de país que era implementado, especificamente no setor econômico. Isso porque a Ditadura foi formada e sustentada a partir de setores do grande empresariado, ao qual essa mídia estava e está vinculada. Hoje, acontece algo semelhante: boa parte da mídia questiona Bolsonaro e o bolsonarismo por seus “excessos”, mas aplaude a agenda econômica que foi formada com Temer e aprofundada com Bolsonaro e Paulo Guedes. Assim, defenderam a reforma trabalhista argumentando, em uníssono com o governo e os empresários, que ela geraria empregos, o que não aconteceu; defenderam a reforma da Previdência argumentando que a Previdência brasileira era deficitária, o que não é verdade. Defenderam a reforma administrativa afirmando que o serviço público brasileiro é inchado, o que também não é verdade. São chavões que funcionam como pretextos para aprovar propostas que favorecem poucos e prejudicam muitos. São tentativas de apresentar como de interesse público a maioria das propostas que são de interesse privado.

EC – Quais foram as principais empresas de comunicação e de que maneira elas consolidaram seu apoio ao tema das reformas?
Haubrich – Podemos citar no sentido que falei anteriormente a Rede Globo, a Folha de S. Paulo, o Estadão, a Editora Abril (notadamente com a revista Veja), a Band… no caso do Rio Grande do Sul, o Grupo RBS e o Correio do Povo, com suas respectivas rádios e emissoras de televisão. As poucas famílias que controlam a maior parte da comunicação massiva no Brasil (um dos países com maior índice de concentração de mídia) atuam de forma muito semelhante na defesa dos mesmos interesses e da mesma agenda formulada pelo capital.

EC – Como observador destes anos de retirada de direitos, você diria que existe volta?
Haubrich – Sempre existe volta. A História não acaba, a luta de classes não para. Neste momento, é preciso planejar e construir esse retorno, tendo como pautas centrais e concretas a revogação urgente e imediata das reformas. Mas, como a História se move, como a sociedade se move, penso que a luta não pode ser por fixar direitos, mas por seguir ampliando-os. Assim, temos um contexto no qual os sindicatos precisam se fortalecer, encontrando saídas para as novas dinâmicas do trabalho, para manter sua vinculação com suas bases e seu entendimento como parte da classe. A luta organizada será o único caminho capaz de recuperar direitos perdidos e situar os trabalhadores, em meio às novas dinâmicas nas quais estão inseridos, como parte da classe trabalhadora.

EC – Quais dinâmicas?
Haubrich – Quando falo em novas dinâmicas, me refiro a um movimento global de precarização do trabalho e também aos desafios sugeridos pelas transformações tecnológicas. Se a política dos “de baixo”, se a política da classe trabalhadora não acompanhar essas transformações e encontrar formas de direcioná-las para os interesses e necessidades da classe, seremos atropelados pelo neoliberalismo, pelo capital e pela superexploração do trabalho. À parte isso, precisamos, em outubro, eleger um presidente e parlamentares comprometidos com a revogação das reformas e com os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras.

EC – Como você compara os três últimos governos no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores?
Haubrich – O governo Dilma foi um período de contradições, com direitos conquistados e outros perdidos. Tivemos conquistas importantes, como a política de aumento real do salário mínimo, a lei dos empregados domésticos e o combate ao trabalho análogo à escravidão. Por outro lado, entre 2014 e 2015 o governo apresentou e conseguiu aprovar medidas provisórias que dificultavam a efetivação de alguns direitos, como o seguro-desemprego (MP 665/2014) e a pensão por morte e o auxílio-doença (MP 664/2014). Mas se tratava de um governo em disputa, cuja agenda em relação aos direitos trabalhistas oscilou.

EC – E o impeachment?
Haubrich – O golpe de 2016 veio para acabar com essa disputa e acelerar um processo de desmonte da legislação trabalhista. Temer foi o agente do capital para isso. É nesse contexto que tem início o processo que segue hoje, de retirada sistemática de direitos sem qualquer debate com a sociedade. Para Temer, isso era um pouco mais difícil, já que não tinha popularidade alguma e sua legitimidade sempre foi questionada. Com Bolsonaro, o processo foi aprofundado com mais facilidade, tanto pela chancela das urnas – embora tenhamos que discutir o que aconteceu nas eleições de 2018, com o impedimento da candidatura do favorito à Presidência e o disparo massivo de fake news –, quanto pela vocação autoritária de Bolsonaro e do bolsonarismo. No atual governo, em meio a uma montanha diária de ataques aos direitos, à democracia e às instituições, medidas que retiram ou relativizam direitos trabalhistas são formalizadas silenciosamente, até mesmo po

Por meio de decretos ou medidas provisórias. O livro trata de algumas delas, como as contratações via “carteira verde amarela”, sem direitos, ou a mais destacada, a reforma da Previdência (que Temer não conseguiu aprovar).

EC – Quais são as situações mais absurdas constatadas no seu livro?
Haubrich – Já citei algumas nas respostas anteriores, mas podemos repisá-las.
O caso das emendas à reforma trabalhista, por exemplo, é escandaloso. Aquele
projeto nasceu pequeno, com um texto curto e breve, justamente para ser emendado e construído durante a tramitação pelas organizações empresariais. A reportagem do The Intercept que identificou, via metadados, que muitas emendas foram escritas nos escritórios dessas organizações revela um escândalo de desvio da democracia. Outro absurdo que posso citar é a aprovação de medidas que causam grave impacto no mundo do trabalho por meio de medidas provisórias e decretos, como tem sido comum no governo Bolsonaro. No caso da reforma administrativa, da qual ainda não falamos aqui, felizmente, a luta dos servidores e servidoras impediu alterações legais de proporções desastrosas, como o fim da estabilidade e a ampliação de formas de contratação pelo Estado sem concurso público, o que abriria caminho para a destruição dos serviços públicos como os conhecemos hoje – com todas as suas limitações, mas que garantem direitos fundamentais à população.

EC – E na reforma da Previdência?
Haubrich – Outra situação absurda foi a tentativa de Bolsonaro e Paulo Guedes de incluir na reforma da Previdência uma proposta de transformação do sistema previdenciário no modelo chileno, de capitalização. Isso iria, a médio prazo, acabar com a Previdência pública brasileira e jogar milhões de futuros aposentados e aposentadas na fome e na miséria. Entre tantos absurdos que vivenciamos nos últimos anos, felizmente, alguns foram impedidos de se consolidar pela força viva da luta dos trabalhadores e das trabalhadoras.

A publicação de Direitos Golpeados – Os ataques aos trabalhadores brasileiros de 2016 a 2022 tem o apoio de oito sindicatos: Aserghc, Sindipolo/RS, Sintrajufe/RS, STIMMMEC, Sindjus/RS, Ugeirm, Simpe/RS e Assufrgs. O livro pode ser adquirido neste link.

 

https://www.extraclasse.org.br/politica/2022/09/seis-anos-de-ataques-aos-trabalhadores/ 




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