Sem língua espanhola da prova do Enem
‘No hablamos Español’: entenda as consequências da retirada da língua espanhola da prova do Enem
Nas duas vezes que fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a estudante Maria Fernanda de Oliveira, 19 anos, escolheu o espanhol como língua estrangeira. As questões de leitura, compreensão e interpretação de outro idioma são parte obrigatória da prova de Linguagens. O desempenho foi bom: das cinco questões, acertou quatro nas duas vezes.
“Acho importante, como latinoamericana, conhecer e estudar a língua que predomina na América do Sul”, diz Maria Fernanda, que pretende fazer o exame novamente esse ano, para tentar uma vaga no curso de Pedagogia. Daqui a dois anos, porém, nem ela nem o restante dos cerca de 60% de candidatos do Enem que decidem pelo espanhol terão essa opção. Em março, o Ministério da Educação (MEC) anunciou o novo Enem, a partir de 2024, e só incluiu a opção de inglês como língua estrangeira.
Se tivesse que fazer a prova sem o espanhol, a jovem acredita que a situação seria mais complicada.
“Optei por estudar espanhol no Ensino Médio. Consequentemente, não tenho um conhecimento mais técnico da língua inglesa e teria um pouco de dificuldade na resolução de questões do Enem”, acrescenta.
Mas se a notícia preocupa e até surpreende os estudantes, não aconteceu o mesmo com professores de espanhol – tanto os já formados quanto aqueles ainda em formação – , que acompanhavam, com apreensão, todos os passos pela exclusão da língua desde 2016. O que está se concretizando agora, na verdade, é um movimento que começou naquele ano, com a aprovação da Medida Provisória 746/2016, conhecida como ‘MP do Ensino Médio’ e convertida em lei no ano seguinte, e a famigerada nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que teve o início da implantação agora, em 2022.
Foi ali, há pouco mais de cinco anos, que a língua espanhola passou por uma reviravolta que ia no caminho oposto ao que vinha acontecendo até então. Para especialistas, essa inversão pode significar uma rede de problemas que chega até a um reforço das desigualdades sociais, dificultando o acesso à universidade.
“A revogação da oferta do espanhol nos deixou surpresos porque ia contra uma tendência mundial e jogava fora toda a política educacional que vinha sendo feita. A gente já previa que, se não houvesse uma reversão disso, a coisa pioraria. Por isso, essa notícia do Enem é triste, é trágica, mas não é surpreendente”, diz o professor Carlos Felipe da Conceição, doutor em Linguística, docente do Instituto de Letras da Ufba e presidente da Associação de Professores de Espanhol do Estado da Bahia (Apeeba).
Histórico
Desde a década de 1990, com o Mercosul, o ensino do espanhol vinha sendo estimulado no Brasil. Em 2005, a oferta no ensino básico se tornou obrigatória. E assim seguiu, por mais de uma década. É neste mesmo contexto, por exemplo, que são fundadas instituições de ensino superior com um intercâmbio e cooperação maiores com outros países da América Latina, como a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), no Paraná, e a Universidade Federal do Pampa (Unipampa), no Rio Grande do Sul.
Agora, o cenário é oposto. Para o filólogo e linguista Xoán Carlos Lagares, professor da Universidade Federal Fluminense e integrante da Associação Brasileira de Linguística (Abralin), a nova postura do Brasil diante da língua espanhola pode esconder um preconceito ideológico associado às mudanças na política externa do país e a um eventual desinteresse em relação à integração regional na América do Sul.
“Mas do meu ponto de vista, parece intervir aqui também um preconceito ainda mais amplo em relação ao plurilinguismo: a percepção da diversidade linguística como ameaça e não como oportunidade. Nos sistemas educacionais de maior sucesso no mundo, no entanto, a presença de várias línguas é um fato normal e desejável”, analisa Lagares.
Desde que a minuta do novo Enem foi divulgada no ano passado, a Abralin se manifestou de forma contrária à decisão. Para a entidade, a própria BNCC está sendo negada, uma vez que os parâmetros permitem o oferecimento “de outras línguas estrangeiras, em caráter optativo, preferencialmente o espanhol”.
“Uma educação linguística que fomente o respeito à diversidade deve poder contar com as condições para que o acesso ao estudo de vários idiomas (inclusive, para além dos estrangeiros, incluindo as línguas indígenas e de imigração do Brasil) seja uma realidade em nosso sistema público de ensino”, defendeu a entidade, em uma nota publicada em novembro.
Proximidade
Uma das razões para tantos estudantes optarem pela prova em Espanhol é justamente pela proximidade com a língua portuguesa. “É uma proximidade que vai além da gramática. É lexical, pela origem comum do latim que faz com que o vocabulário das duas línguas sejam semelhantes. Português e espanhol nascem juntos, são resultado das mesmas questões políticas e sociais”, explica o professor Carlos Felipe da Conceição, da Ufba.
Historicamente, no Brasil, falar um segundo idioma era algo restrito às classes média e alta. No ensino do inglês, as críticas mais frequentes às escolas tradicionais eram de que os alunos saíam sabendo apenas o verbo ‘to be’. Por trás desse cenário, porém, havia desde problemas como a baixa carga horária às disciplinas de língua estrangeira, a falta de formação e até o comportamento de alunos em sala.
Foi assim que os cursos de inglês cresceram no país. “Quando a gente coloca o espanhol na educação básica e procura colocar na perspectiva mais comunicativa para que o aluno possa sair da escola já num domínio intermediário, a gente está democratizando o acesso à língua estrangeira para que alunos que não tenham condição de pagar o curso possam ter acesso”, completa.
Para o professor, há desdobramentos políticos e econômicos também. O reforço de que apenas uma língua estrangeira – a inglesa – é considerada é um indicativo de um modelo de que, ‘se você não fala inglês, não é cidadão do mundo’. Embora essa máxima seja defendida por alguns, muitos educadores a questionam.
“Isso causa um dano ao próprio estudante porque nem todo mundo pode ter habilidade, facilidade ou gosto pela língua inglesa. A gente não é obrigado a falar inglês. Estudar uma língua sem motivação pode até gerar uma barreira”, pondera.
Hoje, a língua espanhola é o segundo idioma mais falado do mundo, quando se consideram apenas falantes nativos. São mais de 420 milhões de pessoas nessas condições, em todo o planeta – só perde para o mandarim, com mais de 1,3 bilhão. Além disso, pessoas que conseguem se comunicar em espanhol podem se virar até mesmo em países como os Estados Unidos, onde a comunidade latina só cresce.
“As aulas de língua estrangeira são aulas de cultura. Elas permitem que os estudantes permitam outras formas de viver, de se posicionar no mundo. Se você tira essas múltiplas possibilidades de existir da sala de aula, acaba restringindo a formação cidadã do estudante”, diz o professor Carlos Felipe da Conceição, da Ufba.
Graduação
Nos cursos de Letras, as mudanças já estão sendo debatidas por professores e alunos. A preocupação não é apenas quanto ao quantitativo de professores, mas também ao desenvolvimento de outras funções na área, como a tradução, a literatura e a filologia, como explica a estudante Larissa Cruz, 20, que está no 3º período do curso de Letras Vernáculas com Espanhol na Ufba.
Os cursos da graduação da Ufba recebem cerca de 90 alunos por semestre, entre as diferentes modalidades de habilitação na língua. Na Bahia, ao menos quatro instituições oferecem habilitações – Ufba, Uefs, Uesc e Uneb.
Ainda na época de escola, Larissa chegou a ouvir comentários de professores falando sobre a possibilidade de exclusão do idioma. Por isso, ela explica que já começou o curso sabendo da situação. “Ainda assim, permaneci com minha escolha”, afirma, citando benefícios da aquisição de uma segunda língua não apenas pelo mercado de trabalho mas pela cultura.
Larissa ainda pretende ser professora, mas hoje acredita ser mais provável que trabalhe em uma escola de idiomas ou até mesmo fora do país, devido às oportunidades de trabalho. “Com a mudança, o Espanhol provavelmente diminuirá ou será extinto das escolas, e muitos professores terão que mudar o rumo. Como profissional, isso me impacta bastante, sabendo que a procura por professores será pequena e, caso exista, a oferta será menor ainda”.
Para manter disciplina, professores organizam movimento #FicaEspanhol
Desde a aprovação da BNCC, professores e pesquisadores em todo o país deram início ao momento #FicaEspanhol, que luta pelo retorno da obrigatoriedade do ensino do idioma nas escolas brasileiras. Mesmo com a retirada, a língua espanhola ainda é oferecida em 75% dos estados – e em 42% deles, segue como matéria obrigatória, de acordo com um levantamento da própria iniciativa.
“Não se entende como uma política pública que precisou de um grande investimento de recursos, provimento de vagas de professores, produção e difusão de material didático, muito tempo e dinheiro investido, possa ser assim desmantelada com uma canetada, com a abrupta revogação dessa lei e a mudança radical de rumos na política de ensino de línguas”, critica o professor Xoán Carlos Lagares, da UFF.
Para ele, o dilema agora fica com os estados, que devem decidir como administrar o investimento feito ao longo dos anos. Segundo ele, a comunidade de professores do idioma deve continuar lutando pela permanência da língua no currículo, agora dialogando com estados e municípios por leis específicas.
“Esperamos e desejamos que o diálogo com a comunidade acadêmica volte a ser a tônica da ação política do MEC e que a mínima racionalidade administrativa necessária se imponha. Se isso acontecer, acredito, sim, que seja possível reverter essa situação antes de 2024”, pondera.
Entre 2005 e 2015, a contratação de professores de espanhol fez surgir novos postos de trabalho em todo o Brasil – tanto na rede pública quanto na privada. Para o professor Carlos Felipe da Conceição, da Ufba, muitos profissionais formados nesse período tinham como objetivo justamente esse mercado que foi anunciado que existiria no Brasil.
“Ninguém fez só por gosto. Havia a promessa de que haveria mercado de trabalho que demandava de milhares de professores de espanhol no país. Ou essas pessoas vão ficar desempregadas ou vão trabalhar precariamente em outras áreas de formação para saber como viver. É um panorama assustador tanto para o estudante quanto para o profissional já formado quanto para o próprio curso de Letras”.
Através da assessoria, o MEC limitou-se a dizer que o novo Enem está alinhado às diretrizes da BNCC e “os tratamentos dados às línguas estrangeiras modernas seguem as mesmas diretrizes”.