Já faz 10 dias que publicamos a reportagem que denunciou que a Justiça de Goiás estava impedindo uma menina de 13 anos, grávida após estupro, de acessar seu direito ao aborto legal.
O caso é chocante: foi o próprio pai da menina, que apelidamos de "Júlia" na reportagem, que entrou na justiça para obrigar a filha a seguir com a gestação. O suspeito de estupro é seu conhecido e tem 24 anos.
A menina manifestou sua intenção de interromper a gestação quando estava com 18 semanas. Hoje, está na 29a. A demora já a fez ameaçar fazer um aborto por conta própria.
Depois que publicamos a reportagem, o caso foi parar na Globo, Marie Claire, Folha. Virou tema de postagem das deputadas Érika Hilton e Sâmia Bomfim. Várias entidades enviaram cartas para as autoridades.
O movimento feminista de Goiás fez vários protestos tocantes, como esse, em que mulheres se vestiram de Aias em frente à Vara da Infância no Tribunal de Justiça de Goiás.
O Conselho Nacional de Justiça enfim abriu uma investigação contra a juíza e a desembargadora que suspenderam o aborto.
Tudo isso, claro, é o que chamamos de impacto: quando nossas reportagens estremecem estruturas e fazem as coisas se movimentarem.
Mas sejamos sóbrios: a situação da menina não mudou. Ela segue tratada como uma incubadora, cuja única função deve ser carregar um fruto de um estupro a termo.
Há uma semana, várias entidades que atuam na área de direitos reprodutivos escreveram aos Ministérios das Mulheres, da Saúde, e dos Direitos Humanos e da Cidadania para que tomem providências sobre o caso. E citaram pronunciamentos públicos dos titulares de cada pasta feitos no passado.
A ministra Cida Gonçalves, por exemplo, já afirmou que “não podemos revitimizar mais uma vez meninas e mulheres vítimas de um dos crimes mais cruéis contra as mulheres, que é o estupro, impondo ainda mais barreiras ao acesso ao aborto legal”.
Já a ministra Nísia Trindade já declarou que é necessário “garantir no SUS o atendimento a meninas e mulheres vítimas de estupro e em risco de vida tal como preconiza o Código Penal de 1940”.
O ministro Silvio Almeida, por sua vez, apontou que obrigar mulheres e meninas estupradas a prosseguirem com a gestação “fere o princípio da dignidade da pessoa humana e submete mulheres violentadas a uma indignidade inaceitável”.
O que farão agora, diante de uma situação concreta que exige que nossas autoridades se movimentem para o mínimo – o respeito à lei?
Na carta, as entidades pediram que os órgãos federais visitem o local e se reúnem com a Defensoria Pública, o Ministério Público e o Conselho Tutelar de Goiás para entender os encaminhamentos do caso da menina.
A ministra Cida Gonçalves foi, até agora, a única que se manifestou sobre o caso em questão. Afirmou que o ministério das Mulheres está acompanhando o caso. "Exigências desnecessárias como autorizações judiciais transformam a busca pelo aborto legal em um calvário na vida de meninas e mulheres", ela disse.
Enquanto o Conselho Nacional de Justiça investiga a conduta das juízas – em um caso descrito como "inequívoca a urgência e a gravidade" pelo Corregedor Nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão –, a menina espera.
E a gente pode levantar as hashtags #CriançaNãoÉMãe, e devemos, mas enquanto fazemos isso, um estupro acontece a cada seis minutos no Brasil – e, em 61% deles, a vítima tem menos de 13 anos.
Nem todos os casos como o de Júlia têm jornalistas, como o Intercept e o jornal goiano O Popular, para expor a conduta questionável da justiça. Já falei esse dado aqui, e é preciso repetir: todos os dias, no Brasil, 26 meninas com menos de 14 anos se tornam mães. Todas elas foram estupradas.
É uma crise humanitária. O PL do Estupro mostrou que a investida antidireitos está à espreita para piorar ainda mais a realidade. Mas o silêncio de quem se opôs ao projeto, agora, diante de um caso concreto, também diz muito.
Júlia segue esperando, correndo um risco maior a cada dia. Os impactos do nosso jornalismo já são nítidos: o caso de Júlia chegou a todo o Brasil. Mas com quem ela pode contar?
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