Ser professora neste país
Ser professora neste país
De Elika Takimoto
"Sempre falo que nunca foi fácil ser professora neste país, mas nunca foi tão difícil.
Nunca vi tantos professores e professoras sofrendo de depressão e ansiedade como de uns tempos para cá. Seja porque o governador sequer paga o piso salarial seja porque viramos inimigos da sociedade.
Eduardo Bolsonaro falou em um evento pró armas que nós, professores e professoras, somos pior do que traficantes. Ele se referia a essa suposta doutrinação ideológica, essa lenda que existe somente na cabeça de quem não conhece a realidade de nossas escolas. E é sobre isso esse texto. Vou aprofundar esse debate agora.
Esse espantalho da “doutrinação” - essa lenda urbana - foi uma das teorias da conspiração de maior eficácia: ela colocou as crianças, símbolos da inocência, como atacadas justamente pelos professores com os quais jovens e crianças passam um período considerável da sua formação.
Esse medo de “professores doutrinadores” que estariam “corrompendo” a infância e a juventude está sendo ainda cultivado como vimos com todas as letras na fala do filho do inelegível.
Tudo o que não é conveniente para eles é considerado “doutrinação”. E com isso a categoria docente está perdendo, de alguma forma, a legitimidade no sistema educacional do país.
O que tanto incomoda Eduardo Bolsonaro, afinal?
Debater sobre a hegemonia da cultura eurocêntrica nos livros de história, sobre o consumismo moderno, a urbanização do mundo, a atuação das empresas multinacionais, a corrida desenvolvimentista, a sustentabilidade, sobre a história contada por pensadores brancos, a violência contra as mulheres, o extermínio da juventude negra, o sucesso baseado unicamente na ascensão econômica, enfim, discutir as desigualdades sociais… é disso que eles têm medo?
A escola tal como a conhecemos hoje, de uma forma bem geral, nasceu em um mundo que começou a ser regido por uma economia industrial. Ou seja, a escola foi a solução e a resposta ideal à necessidade para se preparar trabalhadores acríticos. Não foi sem motivo que foram os grandes empresários do século 19 que financiaram a escola obrigatória e que, ainda hoje, a escola é vista como um grande mercado.
A maioria esmagadora de todas as atividades que acontecem sob o título “Educação” vem de um plano muito bem específico e elaborado que se mantém o mesmo há séculos.
O que estou querendo dizer é que, desde que o mundo é mundo, a escola tal qual a conhecemos sempre utilizou de métodos educacionais doutrinários. Muitos parecem não se dar conta já que nunca tiveram contato com outros métodos de ensino que incentivassem o questionamento daquilo que os detentores de poder vivem dizendo à população. Afinal, verdade seja dita, fomos submetidos a doutrinadores durante toda a vida.
Não é estranho quando temos um ensino que estimule o pensamento livre e autônomo ser visto, por Eduardo Bolsonaro, como doutrinador?
O que ele e seus pares querem é fortalecer o mantra: “professor não é educador”. O professor, segundo dizem, foi feito para "instruir".
"Educação", insistem eles, "vem de casa e da Igreja". Com isso, Eduardo Bolsonaro está dizendo que não devemos discutir política, filosofia, história, religião e sociologia, pois as crianças e os jovens (quando estimulados a ter um senso crítico) serão "doutrinados". Para tanto, ficamos, nós professores e professoras, com a ingrata missão de formar os futuros cidadãos que serão muito bem utilizados nesse mundo poluído, sem sustentabilidade e sem respeito às diferenças.
Vale observar que a Constituição Federal, que evoluiu em certa medida com o tempo, distingue educação familiar da educação escolar, do ensino, atribuindo a este último o papel principal de preparar o educando para o exercício da cidadania.
Isso significa, por exemplo, que se a família decide educar a criança para torná-la fiel a uma determinada crença, o mesmo não pode ser exigido da educação pública, laica, cujo escopo jurídico-político não se subordina a valores.
Ao professor, segundo nossa Constituição, cabe a liberdade de ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber.
Não estou dizendo que a família não tenha um papel fundamental na sociedade. Mas, os responsáveis pela criança não têm e nem devem ter direito absoluto sobre seus filhos. A educação moral não pode (e nem deve) ser exclusiva da família.
Toda pessoa tem direito a se apropriar da cultura e a observar o mundo de forma crítica.
A educação escolar é uma atribuição do Estado brasileiro. E o cidadão brasileiro tem o direito de aprender sobre o evolucionismo de Darwin, a origem do pensamento científico, a luta pela verdadeira abolição da escravatura, a origem das desigualdades sociais e por aí vai.
Oras… as pesquisas sérias em Educação e sobre novas metodologias (que já estão sendo usadas em escolas pelo mundo), mostram que na escola podemos e devemos preparar um cidadão que pense, discuta e critique e não somente um ser que obedeça de forma acrítica uma determinada ordem.
Se os responsáveis hoje preferem que seus filhos frequentem escolas orientadas por valores idênticos aos de suas famílias, têm a opção de matriculá-los em escolas confessionais, privadas, instituídas pela Constituição Federal exatamente para atender ao tipo de demanda prevista.
Mas, nas escolas públicas, mantidas com impostos pagos por todos os brasileiros, a prioridade deve ser a formação do cidadão e nela devem prevalecer a tolerância e a cultura de respeito recíproco e de convivência harmoniosa entre todas as opiniões, ideologias, crenças e religiões.
Hoje, em algumas escolas, diferente de um passado remoto, debatemos sobre a cultura eurocêntrica e a história contada por pensadores brancos entre outros assuntos marcados pela hegemonia do saber. Questionamos por quê as mulheres são tão agredidas, os jovens negros assassinados, a indignação ser seletiva, debatemos sobre o sucesso ser baseado unicamente na ascensão econômica, enfim, falamos sobre vários temas que têm a ver com o mundo injusto que vivemos.
Eduardo Bolsonaro quer silenciar e amordaçar professores fazendo com que escola seja um espaço de conformismo social, cultural e intelectual.
Não tem como não citar Paulo Freire numa hora dessas: “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”.
O sentimento que a extrema direita manipula como poucos é o ódio. E só pode ter ódio se houver um inimigo imaginário. Por isso, a extrema direita, o tempo todo, inventa "inimigos imaginários”, como o "professor doutrinador".
Essa fala criminosa de Eduardo Bolsonaro colocando medo nas famílias ao falar que seus filhos estão nas mãos de professores que são piores que traficantes precisa de uma resposta imediata da justiça.
Não aguentamos mais. Professores estão sendo agredidos, já trabalhamos em condições péssimas, mas isso está nos deixando doentes.
Todo dia é um - ou mais de um caso de - professor sendo de alguma forma censurado.
A extrema direita recomenda que pais e mães processem educadores porque, independente do resultado judicial, o desgaste emocional e financeiro leva naturalmente à autocensura docente.
Um professor de história foi demitido de uma escola particular por trabalhar com uma fonte histórica que mostrava que o lema “Deus, Pátria e Família” já havia sido usado por regimes ditatoriais em Portugal. Em Salvador, uma professora foi afastada por tentar usar com seus alunos um livro de Conceição Evaristo, autora negra fundamental no cenário literário do país.
Os casos são muitos e indicam um fenômeno amplo de deslegitimação da autoridade intelectual de professores e professoras.
Isso está sendo fatal para as escolas e para o futuro do nosso país. Não há ensino se não houver felicidade. Não há felicidade para quem é obrigado a lecionar amordaçado.
E olha que estamos falando de uma categoria que em muitos estados e municípios sequer recebe o piso e trabalha em condições insalubres. Ser agredido dessa forma passa e muito dos limites que qualquer pessoa pode suportar.
É preciso que todos nós repudiemos essa fala de Eduardo Bolsonaro. Incitar o ódio é crime.
Precisamos dar um basta.
Que a justiça seja feita e as escolas protegidas de tanto ódio."
FONTE:
https://www.facebook.com/elikatakimotooficial