Servidores soterrados em empréstimos
Soterrados por empréstimos, servidores do RS recebem cestas básicas para fugir da fome
Associação iniciou movimento de doação de alimentos para membros de categoria com salário básico abaixo do mínimo nacional
Por Luís Gomes luisgomes@sul21.com.br
Servidor do Estado mostra geladeira vazia durante visita da reportagem |
Foto: Joana Berwanger/Sul21
Christian Raymundo Peixoto, 37 anos, começou trabalhar como agente administrativo na Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG) em 2010. Servidor público de nível médio, ele faz parte de uma das categorias de menor salário no Executivo do Rio Grande do Sul, com os vencimentos básicos abaixo do mínimo nacional, que é de R$ 1.320.
Seu salário base é de R$ 1.125. Com vantagens acumuladas em 13 anos de carreira, seu salário bruto de maio foi de R$ 2.398. Com os três empréstimos consignados que têm em seu nome no Banrisul que somam R$ 782 e outros descontos, recebeu um salário líquido de R$ 1.294. Descontado o aluguel de um quitinete na Cidade Baixa e as demais despesas fixas, no dia 6 de junho, já se encontrava com a conta no negativo e com a geladeira vazia. Aguardava, para aquele dia, o recebimento de uma cesta básica da Associação dos Técnicos Administrativos Públicos do Rio Grande do Sul (Astap), entidade que representa servidores de nível médio de secretarias estaduais.
Christian destaca que o salário sempre foi baixo, mas que a situação começou a ficar “ruim mesmo” a partir do início do parcelamento dos salários, em 2015. “Porque aí começou a faltar dinheiro, comecei a fazer empréstimo para pagar as contas e a partir disso daí começou aquela bola de neve”.
Quando viu, Christian estava pegando um novo empréstimo para pagar o anterior. Após renegociar com o Banrisul, concentrou as dívidas com o banco em três empréstimos. O mais curto deles se estende até 2027. O último, só terminará de pagar em 2030. Quando o salário cai na conta, Christian permanece no vermelho. Neste ano, chegou a ter a luz cortada. “Hoje é dia 6 e eu já tô com o cheque especial de novo estourado. Eu sempre recebo menos do que eu estou negativo no banco”, diz.
A Astap foi fundada em 2021 para representar os agentes administrativos do Estado, um cargo no quadro geral do Estado que exige Ensino Médio. A representação sindical da categoria é feita pelo Sindsepe. Contudo, como este representa outras categorias maiores do funcionalismo, os agentes sentiram a necessidade de criar uma entidade de representação direta, ainda que não com atuação sindical.
Desde que foi criada, a Astap vem denunciando a situação famélica em que a categoria se encontra. Em março do ano passado, a entidade se reuniu com o então presidente da Assembleia Legislativa, Valdeci Oliveira, para denunciar que a situação de muitos servidores já era de insegurança alimentar e que havia até o caso de um servidor vendendo balas em semáforos para complementar a renda.
Presidente da Astap, Thomaz Willian da Silva diz que fez uma pesquisa no Portal da Transparência para tentar identificar se alguns dos atuais 367 agentes administrativos da ativa não tinham um empréstimo consignado a pagar, mas não encontrou. Ele estima que 80% da categoria tenha entre 20% e 30% de comprometimento mensal com empréstimos do tipo.
Por lei, os empréstimos consignados contraídos pelos servidores junto ao Banrisul não podem ultrapassar 30% dos vencimentos, mas Thomaz diz que este percentual acaba sendo ultrapassado. “O Banrisul tem um acordo com o Estado onde ele poder tirar 30% do contracheque com os consignados. Mas ele ainda pode fazer uma alteração que o Banrisul chama de proteção ao super endividamento — o nome parece até uma piada –, aonde ele pode tirar mais 30% depois que esse salário cai na conta.”
Thomaz explica que o movimento para doação de cestas básicas começou no final de janeiro deste ano. Inicialmente, elas eram compradas com recursos da Astap. Contudo, como a entidade não tem grandes somas disponíveis, começou a pedir ajuda para sindicatos e gabinetes parlamentares.
“Se a gente for pegar dois anos e meio, a gente pega uma pandemia pelo caminho, pegamos uma inflação absurda. Todas as categorias batem na tecla pela perda de poder de compra, mas, no nosso caso, não foi uma perda de poder de compra, porque a gente já não tinha. No nosso caso, foi a categoria ser soterrada pelas necessidades básicas”, diz.
Em cada cesta básica, há um pacote de açúcar refinado, um pacote de massa de 500 gr, uma garrafa de 900 ml de óleo de soja, um pacote de biscoito sortido de 300 gr, 3 kg de arroz, 1 kg de feijão, um pacote de 250 gr café, um pacote de molho de tomate de 300 gr, um pacote de farinha para polenta de 500 gr e um achocolatado de 300 gr.
“Estamos falando numa cesta básica de R$ 65, então isso dura uma semana, uma semana e um pouquinho”, diz Thomaz. Quando possível, também há um complemento com materiais de higiene e limpeza, que inclui creme dental, papel higiênico, sabão em barra e outros produtos.
Até este dia 13 de junho, a Astap já entregou 10 cestas básicas, mas Thomaz pondera que a maior demanda ocorre no final do mês.
No entanto, o presidente da associação ressalta que a categoria não e a única a estar nesta situação, porque os funcionários de escolas e servidores de nível médio da Secretaria da Saúde também recebem menos do que o salário mínimo.
Questionada pela reportagem, a Casa Civil do governo estadual informou que, em maio de 2023, o Poder Executivo estadual tinha 24.597 vínculos de 40 horas com salário básico abaixo do mínimo nacional, entre 12.213 servidores da ativa e 12.384 aposentados. Para os casos em que o total da remuneração — somando avanços, adicional de difícil acesso, insalubridade, etc. — não chega ao piso, o Estado paga um completivo como forma de parcela autônoma. No caso de Christian, esse completivo é de R$ 286.
Inicialmente, a entrega das cestas básicas era feita em total anonimato, para não expor nenhum servidor. Mas Thomaz diz que, agora, os colegas já estão se sentido mais à vontade, uma vez que passaram a ver que colegas da “mesa do lado” também estão precisando.
Chrstian relata que, após os desconto dos empréstimos consignados, não consegue sair do vermelho
Quando recebeu a reportagem, Christian destacou que não se importava em aparecer na matéria, nem abrir o seu apartamento, em clara situação de insalubridade pelo envelhecimento dos móveis que não possui recursos para trocar.
Apesar da situação, diz que a cobrança por produtividade é alta na SPGG e que acumula funções de outras pessoas. Uma das responsabilidades de Christian é lançar no sistema do Estado as publicações do Diário Oficial. Estima que, a cada mil lançamentos no sistema, é responsável pela metade, com vários outros servidores dividindo o resto. “Enquanto tu estiver trabalhando, a chefia segue feliz, porque não precisa pagar mais alguém para fazer esse trabalho todo acumulado”, diz.
Hoje, atua no modelo híbrido, trabalhando alguns dias de casa, mas o Estado não contribui com as contas de luz e internet. Ele avalia que, se não morasse na Cidade Baixa e não pudesse ir a pé ao Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF), onde está sediada a SPGG, não teria sequer como ir ao trabalho.
“É chato porque a gente tem idade para aproveitar a vida, mas não consegue fazer nada da vida. A única coisa que eu faço é ensaiar com a banda, mas show é muito raro”, diz Christian, que toca baixo, guitarra e bateria em bandas de metal extremo.
Christian conta que já pensou em pedir exoneração várias vezes e, ironiza, que até já calculou que poderia receber mais pedindo dinheiro na rua. “Se eu ficasse 8 horas e dez pessoas me dessem R$ 1 por hora, eu ganhava mais ali”. Por enquanto, segue estudando para passar em outro concurso.
Angela Verginia Borges Parodi atuava como terceirizada na Junta Comercial do Estado quando, em 2010, foi empossada em um concurso para agente administrativa. Originalmente, foi destinada para a Secretaria de Desenvolvimento, mas acabou cedida para a Junta.
Com a experiência que já tinha na função, chegou a ter um cargo de chefia, que lhe garantia uma função gratificada e um extra no salário. Posteriormente, contudo, a cedência acabou e voltou à sua função de origem na Sedec, onde permanece até hoje, já sem a função gratificada, uma vez que não teve o tempo suficiente para incorporá-la. Seu salário básico atual também é inferior ao mínimo nacional.
“Hoje, eu trabalho mais na parte de prestação de contas dos convênios da secretaria com as universidades. É uma responsabilidade que não é pouca, né? E o salário não caminha junto”, diz.
Servidora explica que trabalha de casa para poder cuidar da filha, que tem paralisia cerebral de grau leve
A servidora também avalia que o início do parcelamento foi o estopim para a “bancarrota” da categoria. “Eu vi colegas passarem fome e não vou ser hipócrita, vou dizer para vocês, cheguei a limitar a minha alimentação para as minhas filhas terem o que comer”, diz Angela, que é mãe de duas filhas. Uma delas, é estudante na UFRGS. A outra tem paralisia cerebral de grau leve e depende da mãe quase em tempo integral.
Angela estava no segundo casamento quando começou a ter o salário parcelado. Conta que as dificuldades financeiras interferiram na relação e o casamento acabou. “Onde entra a dificuldade financeira, sai o resto”, diz.
Com as dificuldades acumulando, também se viu obrigada a contrair empréstimos. Hoje, possui um empréstimo no Banrisul, no valor de R$ 691, que terminará de pagar apenas em 2029. Possui ainda outros dois empréstimos com instituições financeiras que somam outros R$ 520. Ela ainda recebe um auxílio de R$ 195 pela filha ser portadora de deficiência, mas um valor que serve apenas para cobrir parte do tratamento dela. Em maio, o salário líquido a receber foi de R$ 861.
“Os meus empréstimos são descontados em folha rigorosamente em dia. Não posso pegar empréstimo do 13º, porque o Banrisul pega e, como se não bastasse, ele pega até a pensão da minha filha se eu fico devendo. O Banrisul não quer saber, caiu na tua conta, ele tira. Basta estar no vermelho, ele não descansa”, diz.
Foto: Reprodução
Angela conta que a situação só não é pior porque, desde 2021, passou a morar num apartamento que pertencia ao seu pai, falecido na época, e contou com o “favor” dos dois irmãos de não lhe cobrarem o aluguel pela parte deles no imóvel. “Teoricamente, eu moro de favor, porque, se eu não pudesse morar nesse imóvel, eu estaria sei lá onde, porque não teria condições de pagar aluguel”, diz.
Como renda extra, Angela vende doces e salgados no condomínio, mas pontua que é uma renda totalmente variável. Além de receber a ajuda da cesta básica da Astap, Angela precisou recorrer recentemente a uma vaquinha entre membros da associação e conhecidos para pagar a conta de luz, que fora cortada e que era essencial para produzir os doces e salgados que vende. “Eu vou ser bem sincera, a gente tem vergonha”, diz. “Eu recorri à Astap para ter uma cesta básica. Sabe, 13 anos de Estado, não imaginei que fosse chegar nessa situação. E, vou te dizer, tem colegas em situação bem pior”.
Apesar de ter 22 anos, a filha de Angela não pode ficar sozinha. Em razão disso, ela pediu para trabalhar de casa. Angela recebeu um computador da secretaria que usa para acessar remotamente o equipamento do escritório, mas nem todos dispõem dessa estrutura mínima.
Carmem Lucia Schwindt de Matta trabalha na Secretaria de Desenvolvimento Econômico, como agente administrativa, desde 2008. Apesar de também trabalhar em regime híbrido, hoje, Carmem não possui um computador para fazer trabalho remoto. Quando precisa, trabalha pelo celular. “Tu assina um papel para fazer teletrabalho em que tu tem que ter um computador, internet e tudo. Agora, eu não tenho. Eu tinha um meia boca e estragou.”
Atualmente, recebe R$ 1.181, com uma parcela autônoma de R$ 286 para completar o salário mínimo. Com benefícios e gratificações, o salário bruto chega a R$ 2.615, mas possui descontos de R$ 1.236, o que inclui sete empréstimos. O mais curto deles vence em agosto de 2025, enquanto outros só se encerram em outubro e novembro de 2030. “O único jeito da gente sobreviver é fazendo empréstimo. E daí entra aquela história toda de juros abusivos e a gente acaba se encalacrando”, diz.
O vale-alimentação da categoria é, atualmente, de R$ 268, o que inclui um aumento de R$ 28 recebido no ano passado. “Quem é que consegue se alimentar por mês com R$ 268? É bem complicado, sou mãe divorciada, pago aluguel, luz e alimentação, então me sobra líquido uns R$ 300, por aí”.
Como complemento, faz bicos por fora e recebe a ajuda do filho, que é estagiário, mas há três meses também passou a recorrer à cesta básica cedida pela Astap. Ela conta que a doação dá uma “aliviada” por uns 15 dias. Carmem vende roupas usadas, muitas delas que recebe de colegas da secretaria. Diz que já pensou em procurar outro emprego, mas que, com 60 anos, teria dificuldade para se recolocar no mercado.
“É uma realidade bem dura. Nós fizemos concurso. Em muitos momentos, fazemos o trabalho igual ao de um técnico administrativo [carreiras de ensino superior nas secretarias]”, diz Carmem. “Muitas vezes, a gente é cobrado como se fôssemos substitutos dos técnicos, assumimos trabalhos de imensa responsabilidade, muito além do que seriam as nossas atribuições”.
Thomaz conta que já participou de diversas reuniões com representantes do governo do Estado e que não há nenhum sinal de que a categoria possa receber um reajuste em um futuro próximo. Contudo, diz que, após expor a situação para a secretária de Planejamento, Governança e Gestão, Danielle Calazans, recebeu uma sinalização de que a criação de um auxílio rancho ou complementação do vale-alimentação não estaria descartada.
“O Estado tem vários entraves para uma reestruturação de carreira, para um um aumento de salário, limite prudencial, regime de recuperação fiscal. São entraves que são usados como desculpa, mas é uma desculpa que está na legislação. Então, essas mãos atadas que eles justificam realmente têm uma legalidade hoje, mas se entende que o auxílio rancho ou um aumento no vale-refeição seria uma verba de custeio e não entraria nesses entraves. Por isso que a gente tá intensificando essa doação de cestas básicas e lançando uma campanha pelo auxílio rancho para que a gente consiga tirar o servidor da insegurança alimentar. Ninguém deveria passar fome no Brasil, ninguém deveria passar necessidade no estado, mas dentro do serviço público é um pouco mais gritante, né”, diz.
Em resposta à reportagem, a Casa Civil diz que a possibilidade de criação de um auxílio rancho ou complementação no vale-alimentação está em “fase de estudo técnico sobre a viabilidade e impacto financeiro”.
Por outro lado, descarta totalmente a possibilidade de conceder um reajuste para os menores salários do Estado. “O cenário de queda de receita, em razão da redução das alíquotas de ICMS, impactou alguns indicadores, entre os quais, a despesa de pessoal da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que ficou em 47,88% (no final de 2022), forçando o Poder Executivo a ultrapassar o limite prudencial, que é de 46,55%. Nessa situação, a LRF prevê um conjunto de medidas para promover sua adequação, como a vedação de reajustes salariais e nomeações de servidores, ressalvadas reposições nas áreas de educação, saúde e segurança”, diz nota da Casa Civil.
A pasta lembra ainda que o governo concedeu 6% de reajuste ao quadro geral de servidores, o primeiro desde 2006, raro momento em que os agentes administrativos receberam aumento salarial. “O Rio Grande do Sul, nos últimos anos, não tinha margem para reajuste geral aos servidores, tendo atrasado salários durante 57 meses e deixado de pagar a dívida com a União por conta de liminar desde 2017. Somente em 2020, com reformas e medidas de ajuste, foi possível colocar em dia os salários e o pagamento do 13º salário, que foi pago com atrasos durante seis anos”, diz a nota.
Contudo, Thomaz argumenta que conceder reajuste às categorias que recebem menos que o salário mínimo não teria grande impacto no caixa do Estado. “Eu trabalho numa divisão que faz planos de carreira, então conheço o orçamento. Cara, se colocar nós, os servidores de escola e os demais de nível médio, não é um valor absurdo. Talvez estejamos falando de R$ 10 milhões por mês, isso é troco para o Estado”, afirma.
Ele diz ainda que, apesar de ser uma categoria de nível médio, 70% dos membros têm ensino superior. Contudo, o acréscimo salarial para quem possui graduação é de apenas R$ 40. Destaca também que há uma parte da categoria que não está em situação famélica, porque possui funções gratificadas, que garantem remuneração salarial. “E não é porque o pessoal é político, longe disso, é porque o pessoal é muito capacitado e entrega muito ao Estado. Desde a época do Sartori, nossa categoria é a mais solicitada de todas para cedência”, afirma.