Sinais estranhos à gestão democrática
Em tempos de pandemia sinais estranhos à gestão democrática: quem está fazendo as políticas de educação?
por Lucia Camini
“A educação transforma o mundo quando pautada na realização dos direitos humanos”- Mandela
A pandemia agrava o complexo quadro educacional brasileiro e rio-grandense, em especial no âmbito da escola pública. No Rio Grande do Sul as aulas foram suspensas em meados de março e desde aquele momento muitas são as preocupações e inseguranças que rondam as equipes diretivas, professores e funcionários das escolas estaduais. No primeiro momento as Coordenadorias Regionais de Educação (CRES) orientaram as escolas para o desenvolvimento de aulas programadas e a partir do inicio de junho a SEDUC “resolve implantar o Regime Especial de Atividades Escolares Remotas – Não Presenciais para o Ensino Fundamental e Ensino Médio” (SEDUC, 2020) visando o cumprimento do calendário e garantir o ano letivo de 2020.
Esse documento orientador encaminhado às escolas informa que o material de apoio para esse período de ambientação e adaptação às aulas virtual (Google Sala de Aula, cópia digital, formato PDF ou impressa) foi desenvolvido e tem curadoria da Fundação Lemann, lmaginable Futures e Amplifica, e foi concebido para ser utilizado tanto online quanto offline, bem como para o Ensino Médio. Informa também que por tratar- se de estratégia diferenciada de ensino, foram elaboradas matrizes de referência, em conformidade com a BNCC. Para isso, os professores seriam capacitados e as condições necessárias em termos de estrutura básica para a utilização das novas tecnologias digitais (equipamentos, conectividade à rede) seriam asseguradas aos professores e estudantes de acordo com as demandas.
Em nova orientação recentemente chegada às escolas apresenta-se uma proposta de organização pedagógica de um Modelo Híbrido de Ensino para esse tempo de excepcionalidade e indica que o mesmo pode e deve permanecer para além do momento de pandemia. Uma metodologia a ser desenvolvida em parte por meio do ambiente virtual de aprendizagem e em outra parte em ambiente presencial. A urgência na adoção das tecnologias digitais de aprendizagem e desse modelo de ensino é justificada pela situação causada pela pandemia de COVID-19.
As formas adotadas para esse modelo de ensino são Google Sala de Aula (Classroom), material digitalizado e disponibilidade de acesso mediado pela escola. São anexadas as Matrizes de Referência para o Modelo Híbrido de Ensino a ser implementado no ensino presencial ou remoto. A equipe diretiva, de supervisão e orientação educacional tem suas atribuições descritas nesse documento, responsabilizando-as por todo trabalho de planejamento, estruturação e viabilização desse processo. Até aqui, pode-se dizer que essa é a atribuição desses sujeitos que trabalham na escola, mas, quando olhamos para as condições concretas hoje existentes nas diversas escolas que compõem a rede pública de ensino, nos deparamos com adversidades e limitações de toda a ordem. Os baixos salários dos profissionais da educação, congelados há seis anos, recebidos de forma parcelada e sempre atrasados, o déficit de equipamentos de acesso às ferramentas digitais e a situação econômica dos estudantes e suas famílias pesam nesse período excepcional de pandemia. Esse quadro soma-se ao isolamento das crianças e jovens e sua comunicação com os pares, com os professores e com o resto do mundo via redes sociais fragilizando os vínculos afetivos e sociais indispensáveis para o seu desenvolvimento.
Após a suspensão das aulas não ocorreu um processo de discussão junto às escolas com o apoio direto das CRES, apenas receberam informações mínimas, sem, contudo considerar as especificidades de cada comunidade escolar. Observa-se que o Parecer do CEEd nº 001/2020 admite o planejamento e realização de atividades escolares não presenciais durante o período de pandemia, ressaltando a observância dos parâmetros de qualidade, a comunicação permanente com as famílias e estudantes e os registros necessários para a validação desse trabalho pelo conselho escolar ao final do período de pandemia. O respeito à autonomia da escola na definição do seu programa de ação baseado no seu projeto político-pedagógico, nos planos de curso e no plano de trabalho de cada docente são assegurados, assim como a função do Conselho Escolar como órgão máximo de deliberação na escola é reconhecido e incentivado.
A concepção de gestão democrática na organização e desenvolvimento do ensino não pode admitir a padronização, pois em cada espaço escolar os sujeitos envolvidos são únicos e diversos, a eles compete formular o percurso a ser seguido dentro das condições reais dos profissionais, dos estudantes e das famílias ou responsáveis diretos pelos estudantes. A sobrecarga de trabalho advinda da duplicidade de tarefas, atividades domésticas/familiares e as atividades pedagógicas, isso têm provocado stress, adoecimento e muita insegurança, considerando as condições adversas enfrentadas, tais como professores e alunos sem acesso as ferramentas digitais, à internet banda larga, entrega de material digitalizado e impresso nas escolas com riscos de contaminação e a falta de entrega regular da merenda escolar para os alunos necessitados.
Nesse sentido, atribuir a Fundação Lemann e seus parceiros privados a responsabilidade pela seleção de conteúdo essencial que compõe a Matriz de Referência compartilhado na plataforma digital para utilização nas aulas não presenciais, significa permitir que a mesma assumisse o papel de um sujeito externo a interferir nas definições do que os professores irão desenvolver em suas aulas. Importa destacar: em fevereiro de 2019, o governo do estado do Rio Grande do Sul firmou parceria com a Fundação Lemann, representando uma Aliança de organizações do terceiro setor, formada por Instituto Humanize, Instituto República e a Fundação Brava para prestar assessoria ao governo na área da educação (FUNDAÇÃO LEMANN, 2019).
Tem-se observado que a pandemia está acelerando a implementação de ferramentas digitais no Brasil e a venda de plataformas para todos os níveis de ensino. O Sr. Jorge Paulo Leman, um dos homens mais ricos do mundo, afirma com entusiasmo: “a EAD deverá se disseminar após a pandemia”, o que inclui as fundações que suas empresas mantêm no Brasil e no exterior, nas quais será dada maior ênfase ao ensino virtual. Daí advém a preocupação com a ingerência de setor privado na elaboração de conteúdos, assim como o controle de dados e informações disponibilizados pela rede pública estadual em plataforma privada – Google. Sabe-se que dados e informações pessoais são bens valiosos, tanto do ponto de vista dos valores e garantias individuais de cada cidadão, bem como do ponto de vista monetário, por isso a preocupação dos responsáveis diretos nas escolas com essa disseminação de dados que podem colocar em risco a privacidade das pessoas cadastradas em plataformas privadas.
A avaliação diagnóstica e formativa dos alunos no retorno às aulas presenciais precisa considerar o que o aluno aprendeu e identificar quais as lacunas para a recuperação da aprendizagem, conforme o Conselho Estadual de Educação destaca no Parecer CEEd nº 002/2020: “é importante que cada instituição de ensino defina diferentes formas de intervenção pedagógica e acompanhamento adequados a cada nível/etapa/modalidade de ensino para detectar as lacunas que podem ter ocorrido com o prolongado período sem aulas presenciais”. Orienta a elaboração de um Plano Pedagógico Complementar onde devem constar todos os passos de realização desse processo. E alerta ainda: “a recuperação de aprendizagem também tem o objetivo de evitar o abandono escolar e dar possibilidades para cada estudante desenvolver, de forma plena, o que é esperado ao fim de seu respectivo ano letivo, considerando as especificidades do currículo proposto pelas respectivas instituições de ensino para esse momento” (Parecer CEEd nº 002/2020).
Sendo assim, neste momento cabe às escolas registrar todas as atividades desenvolvidas nesse período excepcional, sem atribuição de notas ou Pareceres de fechamento, porque estão trabalhando com parte do currículo previsto para 2020. No momento de retorno às aulas presenciais as observações registradas pelos professores serão consideradas, o aproveitamento dos estudantes será avaliado caso a caso, isso não é possível ser feito durante esse período excepcional por falta de clareza sobre os processos de aprendizagem de cada um, porque a avaliação não pode servir como medida de punição ou exclusão. Da mesma forma, não se admite que nenhum estudante possa ser sumariamente retirado do sistema ou sofrer qualquer prejuízo no seu percurso escolar, em especial aqueles pertencentes à Educação de Jovens e Adultos, compreendida como uma forma de resgate de um direito não assegurado na idade escolar obrigatória.
O Conselho Escolar, como órgão máximo de deliberação na escola, fará a validação das atividades domiciliares realizadas ou não nesse período e aprovará o novo calendário escolar. O replanejamento para a continuidade do processo educativo em cada nível, etapa e modalidade de ensino oferecidos na escola será apresentado aos pais ou responsáveis. Para que a escola possa se organizar e atender de forma adequada a essas exigências e aos protocolos sanitários intersetoriais será necessário mais investimento público (verba emergencial), quadro completo de profissionais na escola, equipamentos, apoio pedagógico e formação permanente.
Diante desse quadro de pandemia e sobrecarga de atribuições e responsabilidades que recaem sobre os profissionais da educação da escola pública estadual, sem o devido diálogo com esses sujeitos, cabe lembrar que os sistemas de ensino continuam a gozar de autonomia na elaboração de suas propostas pedagógicas e as escolas, em obediência ao que determina explicitamente o artigo 14 da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), devem elaborar seus projetos políticos pedagógicos (PPP) com a participação dos profissionais da educação. Destaca-se a centralidade do papel dos educadores, como sujeitos responsáveis pelo processo e não meros executores de propostas formuladas longe do espaço da escola ou influenciados por setores empresariais privados.
O desafio central desse período é encontrar estratégias que não aprofundem as desigualdades já existentes pela dificuldade de conectividade de grupos significativos de alunos e pela falta de interação na plataforma digital onde são postadas as atividades. Para isso, faz-se necessária a articulação e mediação entre todas as instâncias, da SEDUC até as escolas públicas estaduais, caso contrário teremos uma brutal desigualdade na educação. Precisamos de escolas e currículos comprometidos em promover a igualdade e o combate a todo tipo de exclusão e discriminação.
Os processos da política educacional precisam ser mais democráticos, transparentes e inclusivos, contando com a participação direta da comunidade escolar, fortalecer um projeto democrático de educação nos conteúdos e nas formas, defender os ideais de apreço pela educação pública, democrática, laica, de qualidade social para todos e todas como uma parte essencial da democracia.
Nesse processo nenhum estudante pode ficar para trás.
(*) Mestre e Doutora em Educação pela FACED/UFRGS; professora da Rede Pública de Educação do RS (aposentada); ex-Presidente do CPERS Sindicato; ex-Secretária de Educação do RS; Representante do CPERS no Conselho Estadual de Educação (atual).