Sistema de saúde em exaustão
O governo sabia desde abril que devia se preparar para a vacinação; agora o sistema de saúde entrará em exaustão”
Gabriel Brito, da Redação 12/03/2021
O Brasil ultrapassou o limiar das 2000 mortes diárias e é oficialmente o epicentro global da pandemia do novo coronavírus. O mês de março terminará com 300 mil mortes e no atual ritmo de vacinação e políticas públicas de prevenção ao vírus serão meio milhão de mortes por volta de setembro. Sobre este quadro, as responsabilidades do governo federal, dos entes estaduais e o futuro próximo em meio às variantes do vírus, entrevistamos a médica e pesquisadora de saúde Melina Pecora.
Sobre a aceleração da vacinação, Pecora afirma que não há necessidade de a Anvisa demorar-se na análise do que já tem aceitação por órgãos de prestígio global. “Faz-se necessária a utilização de critérios com alta credibilidade no meio médico, adotados por agências de controle internacionais sabidamente idôneas e confiáveis no meio científico, a exemplo da FDA (Food and Drug Administation). Melhor explicitando, se a FDA liberou determinada vacina, sabendo os padrões rígidos que esta utiliza, devemos validar sua pesquisa ao invés de tornar o processo mais lento e realizar a mesma pesquisa em nosso país, o que tarda a imunização para diversas pessoas, levando a um alto número de internações e óbitos”.
Sem entrar nos méritos das intenções políticas de um presidente classificado como genocida por enormes parcelas da sociedade, a entrevista debate a gestão pública da pandemia e as atuações dos entes de governo frente ao caos de forma técnica. Mesmo assim, a estudiosa é taxativa em traçar um quadro absolutamente desastroso de continuidade da pandemia.
“Diante da falta de medidas eficazes de contingenciamento do vírus, quer pela não adoção das medidas de isolamento, quer pela baixa testagem, quer pela baixa taxa de imunização, o Coronavírus está se multiplicando em um território bem favorável a ele (...) Desde abril do ano passado é sabido por toda a comunidade científica que a solução para a pandemia seria a vacinação”.
Melina Pecora, pediatra e também advogada, também comenta a necessidade de se recuar em todas as atividades, a exemplo das escolas, aponta como antiética a compra de vacina pelo setor privado e não tem dúvidas em prever o colapso dos sistemas público e privado de saúde, numa devastação que certamente vai além dos números oficiais.
“Os sistemas de saúde, público e privado, irão entrar em exaustão. Observando as curvas, tanto de casos novos de Covid quanto de novos números de óbitos, podemos inferir com segurança que os sistemas de saúde não terão como abarcar a quantidade de infectados sintomáticos, que apresenta alta na grande maioria dos estados brasileiros. Se por um lado a taxa de transmissibilidade tem aumentado, com a alta de infectados assintomáticos, por outro lado a taxa de infectados sintomáticos é um percentil em cima do número total dos infectados”.
A entrevista completa com Melina Pecora pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como avalia o Plano Nacional de Imunização do governo federal e a condução do processo de vacinação até aqui?
Melina Pecora: O Plano de Imunização deve ser em nível federal, é uma política pública de atenção básica em saúde, ou seja, medicina preventiva, a fim de evitar patologias ou suas formas mais graves.
No caso do Covid-19 deveria ter sido preconizado um Plano Nacional de Imunização em caráter emergencial, haja vista o momento que estamos vivendo. Em meados de abril do ano passado era previsível a todos de que a vacina seria a solução possível de um vírus com alta mutabilidade.
Venho estudando este vírus desde janeiro de 2020, quando retornei de uma breve estada em Torino, região do Piemonte, onde o vírus começou a se alastrar, entrando em contato com colegas médicos, formados aqui no Brasil e que trabalham na Europa, particularmente em Oxford.
Em relação ao Plano de Imunização, alguns itens básicos devem ser pontuados: primeiramente, em se tratando de um vírus de alta transmissibilidade, o que ensejou medidas drásticas de isolamento social, já em abril de 2020, logo após o carnaval, temos de considerar que houve tempo hábil para que o Governo Federal preparasse a compra de insumos, seringas e agulhas para a imunização que viria.
Ressalta-se ainda o investimento em terapia medicamentosa sem comprovação científica ou técnica, qual seja a hidroxicloroquina, o que acarretou por si só a diminuição da produção de medicamentos extremamente necessários pelo Laboratório do Exército.
Outra questão para a qual não podemos fechar os olhos é em relação à educação e conscientização das medidas a fim de que se diminua a propagação do vírus, as medidas de distanciamento e proteção pelo uso de máscaras e EPIs.
Cabe ao governo federal, não eximindo os estados e municípios, fazer a campanha educativa junto à população na conscientização das medidas de isolamento. Do ponto de vista técnico é cristalino que a liberação de vacinas para o Covid deve seguir um processo mais rápido do que a liberação de vacinas para outras patologias.
A fim de que isto ocorra sem prejuízo na eficácia da imunização e evitando efeitos adversos, faz-se necessária a utilização de critérios com alta credibilidade no meio médico, adotados por agências de controle internacionais sabidamente idôneas e confiáveis no meio científico, a exemplo da FDA (Food and Drug Administration). Melhor explicitando, se a FDA liberou determinada vacina, sabendo os padrões rígidos que esta utiliza, devemos validar sua pesquisa ao invés de tornar o processo mais lento e realizar a mesma pesquisa em nosso país, o que tarda a imunização para diversas pessoas, levando a um alto número de internações e óbitos, o que fatalmente foge do controle.
Outra questão que se coloca é em relação ao auxílio financeiro para situações de pandemia, que deve vir do governo federal para os estados e municípios, constitucionalmente previsto, e aos Programas de Distribuição de Renda que em situações de pandemia devem ser implementados.
Melina Pecora, arquivo pessoal
Correio da Cidadania: Mas estamos bem longe de um nível correto de coordenação deste plano.
Melina Pecora: Em suma, um Plano de Imunização concebido dentro das diretrizes acima expostas diminuiria a crise financeira, uma vez que torna mais eficazes as medidas de isolamento, ou seja, após um período de fechamento haveria possibilidade de reabertura, como está a ocorrer na Europa.
Insta salientar que o Plano Nacional de Imunização deve englobar não apenas a compra e distribuição de vacinas e insumos, mas mais que isso uma campanha de conscientização junto à população, seja da importância do uso de máscara, seja da importância do distanciamento social. Campanha que deveria ter sido encabeçada pelo Governo federal, a exemplo do resto do mundo.
O detalhamento do Plano de Imunização pode ser feito em nível regional e municipal, conforme as peculiaridades regionais e locais, entretanto, todo e qualquer plano de imunização, segundo normas do SUS, devem seguir padrões federais.
Devemos considerar ainda que a aplicação e distribuição de vacinas ocorrem nas Unidades Básicas de Saúde, ou seja, nos chamados Postos de Saúde, que pertencem à Atenção Básica de Saúde. Cabe aos municípios cuidar da atenção básica em saúde. Não podemos confundir esta execução do plano com um planejamento de nível federal.
Aqui cabe uma ressalva: o Governo Federal delegou algumas das funções de enfrentamento ao Covid-19 para os governos estaduais e é nesta seara que o estado de São Paulo montou seu plano de vacinação, a fim de enfrentar o novo coronavírus.
Correio da Cidadania: Os governos estaduais se diferem qualitativamente?
Melina Pecora: Como podemos ver nas estatísticas de taxa de vacinação há uma diferença significativa entre os estados.
No Brasil até o presente momento, vacinou-se muito pouco, de modo que a variação chega a dobrar de um estado para o outro, o que não deveria ocorrer, pois o Plano de Imunização deve ser Federal e para todos os estados.
Outra questão que se coloca é a velocidade de vacinação, que por si só já gera esta disparidade quantitativa entre os estados.
O fato de o Brasil ser um país de dimensões continentais não impede a realização de um plano nacional homogêneo preconizado pelo governo federal, de acordo com as faixas etárias que deveriam seguir a mesma velocidade em todo o território nacional.
Há estratégias preconizadas pelo governo de São Paulo no sentido de imunizar primeiro as populações que sofrem o maior número de óbitos devido ao Covid-19, em torno de 77% dos óbitos por esta causa estão entre os grupos que foram instados a vacinar primeiro, daí o motivo de se iniciar a vacinação pelos profissionais da saúde de linha de frente de atendimento, bem como idosos e indígenas.
Tudo isto é no sentido de diminuir os óbitos.
Correio da Cidadania: O que comenta das novas cepas do coronavírus e da afirmação do infectologista Marcus Lacerda, da Fiocruz-AM, de que a variante de Manaus deve se expandir pelo país em breve?
Melina Pecora: Desde janeiro de 2020, quando indagada a respeito da questão do Novo Coronavírus, sempre dizia que o vinha a me preocupar era a questão da alta mutabilidade do vírus. Uma mutação específica — D614G — está se tornando dominante e pode tornar a doença ainda mais infecciosa.
Diante da falta de medidas eficazes de contingenciamento do vírus, quer pela não adoção das medidas de isolamento, quer pela baixa testagem, quer pela baixa taxa de imunização, o Coronavírus está se multiplicando em um território bem favorável a ele.
Sabemos que o Coronavírus é um RNA vírus, sofre alterações diversas em seu material genético, alterações que em ambiente propício o tornam mais resistente e aumentam a sua transmissibilidade. E isso já ocorre em nosso país.
Correio da Cidadania: Como avalia a volta as aulas neste contexto?
Melina Pecora: Há que se considerar que as crianças precisam de interação social, sendo este fator importante no seu desenvolvimento neuro-psicomotor, entretanto, a curva de crescimento da transmissão e letalidade do novo coronavírus deve ser levada em conta para se avaliar este momento.
A necessidade de interação e o aprendizado não podem ser vistos de maneira isolada quando se programa a volta às aulas, há que se cumprir também os protocolos de distanciamento social e de higiene a fim de diminuir a transmissibilidade.
O programa de volta às aulas deve seguir, além do preconizado pela Lei de Diretrizes e Bases para Educação, as normas preconizadas pela Vigilância Epidemiológica e, mais que isso, a Vigilância Epidemiológica deve observar os padrões de curva da pandemia de transmissão e de óbitos.
Se estamos com uma curva que mantém padrões piores aos anteriores, não faz sentido afrouxarmos estas medidas; é por si só uma incoerência. Claro que a socialização das crianças é importante, mas já foi provado que as crianças são grandes transmissoras do Covid-19, de modo que estamos expondo uma população adulta, muitas vezes grupo de risco para óbitos para contrair Covid 19,
Cumprindo-se os protocolos de distanciamento social e medidas de higienização há uma minimização desta transmissibilidade. Entretanto, seria de suma importância que essa população adulta fosse vacinada, antes de entrar em contato com seus possíveis transmissores.
Correio da Cidadania: Já estamos condenados a um sofrimento maior que a média mundial devido à forma como foi conduzida toda a questão? Isto é, o Brasil será um dos últimos a agilizar a vacinação de sua população?
Melina Pecora: Desde abril do ano passado é sabido por toda a comunidade científica que a solução para a pandemia seria a vacinação. O Brasil é um país extenso com muitas diversidades regionais, isto não pode ser desconsiderado.
Porém, o que ocorre hoje em nosso país é um descontrole em relação à pandemia do Novo Coronavírus.
Os dados apresentados devem ser sempre comparados com os outros países. Não podemos falar que estamos com política adequada de enfrentamento do Novo Coronavírus quando o mundo inteiro diz o contrário.
Há técnicos no Ministério da Saúde (MS) de alta capacidade e com formação médica, o que é salutar para este momento, entretanto, nos setores de comando não vemos isso acontecer, infelizmente.
Os dados são objetivos e subestimados, ainda assim as curvas mostram uma piora exuberante tanto na transmissibilidade do Covid quanto no número de óbitos.
Há três variantes mundiais que devemos nos preocupar: a do Reino Unido, a do Amazonas (que agora não é mais conhecida como a variante do Amazonas, mas sim a VARIANTE BRASILEIRA, haja vista ela ter percorrido outros estados), e a variante da África do Sul.
Constatou-se a presença da cepa originária do Amazonas no interior de São Paulo. Estes são dados objetivos, ou seja, a distância percorrida de Manaus até o interior de São Paulo não se deu pela via aérea. É muito provável que teremos muitos exemplares desta nova cepa em vários outros estados.
O que dificulta o controle da pandemia e evidencia que a vacinação está atrasada, pois se a imunização estivesse sendo feita de maneira adequada não haveria tais dados.
Correio da Cidadania: O que pensa da ideia de alguns setores do grande capital em importar a vacina? Existe esse debate em outros lugares do mundo?
Melina Pecora: A Saúde conforme preconizada em nosso país deve ser pública e universal, independentemente de contribuição. Entretanto, uma vez que os setores públicos não são capazes de gerir a imunização, os setores privados irão assumir esta questão, pois não houve prioridade na imunização.
As parcerias com o setor privado são inevitáveis, o que não pode ocorrer é que as vacinas sejam disponibilizadas para quem pague, como fonte de lucro.
A saúde não pode ser vista como um mercado, mas é importante se respeitar as faixas etárias. Devemos, sempre, priorizar os grupos mais vulneráveis onde ocorrem mais óbitos, ou seja, entre os profissionais de saúde e os mais idosos com outras patologias.
Em suma, parcerias com o setor privado podem ocorrer, mas sempre visando o melhor interesse da coletividade e não de grupos que detém o poderio econômico.
A saúde pública deve ser para todos, e jamais como meio de comércio. A saúde é um direito de todo o cidadão, prescrito na Constituição Federal, uma cláusula pétrea, ou seja, não pode ser violada nem por Emenda à Constituição.
Em um Estado Democrático de Direito deve ser gerida de forma a proporcionar ao cidadão o mínimo existencial em sua dignidade e o direito à vacinação faz parte da dignidade humana.
Correio da Cidadania: Como prevê que ficarão os sistemas de saúde público e privado nos próximos meses?
Melina Pecora: Os sistemas de saúde públicos e privado irão entrar em exaustão. Observando as curvas, tanto de casos novos de Covid quanto de novos números de óbitos, podemos inferir com segurança que os sistemas de saúde não terão como abarcar a quantidade de infectados sintomáticos, que apresenta alta na grande maioria dos estados brasileiros.
Se por um lado a taxa de transmissibilidade tem aumentado, com a alta de infectados assintomáticos, por outro lado a taxa de infectados sintomáticos é um percentil em cima do número total dos infectados.
E mais que isso, quanto maior transmissibilidade mais o vírus que se torna resistente e se multiplica. Ou seja, não estou dizendo que conforme a transmissão no Covid aumenta, aumenta a mutação, o que estou a dizer é o seguinte: uma vez que a transmissibilidade aumenta, a multiplicação do vírus também aumenta.
Sabemos que a mutação é uma característica intrínseca do Coronavírus. O que está a ocorrer é que as novas cepas do Coronavírus irão se multiplicar rapidamente, infectar novas pessoas. Por fim, as novas cepas chegarão a locais até então não infectados.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.