Sobre andaimes
Sobre andaimes
Li que um Município do RS vai antecipar as férias escolares. Não sei o que pensar sobre isso. Nos comentários da notícia muitas concordâncias de que as crianças estão cansadas, os professores exaustos e que vai ser um tempo importante para o planejamento da nova etapa. Fiquei pensando nos comentários. O foco estava no planejamento, não no descanso. Fiquei pensando no ócio produtivo, que é claramente incompatível com a situação que estamos vivendo.
Professores não são entes vocacionados cujo amor à profissão é incondicional! Professores estão passando pelas mesmas tensões: possuem filhos em situação escolar remota, tem idosos e pessoas pertencentes a outros grupos de risco na família, estão usando máscaras na rua e limpando a sola dos sapatos e as patas dos cachorros quando chegam em casa. E as compras, ah, as compras são um capítulo à parte... Esses dias coloquei música para tornar a higienização menos cansativa... Foram NOVE músicas e meia do CD Kid Abelha acústico!!! E isso que não contei o tempo de subida e descida de elevador do carrinho de compras nem a minha higienização pessoal (sapatos, roupa, máscara, etc.). Cada santo saquinho de queijo ralado, cada batatinha, tudo a ser lavado, higienizado, esterilizado. E o medo de não estar lavando adequadamente? E o pavor de ser responsável pelo adoecimento de alguém da família por que a porcaria do saco de bolachinha não teve álcool suficiente em sua superfície?
Professores estão assim, com toda essa pressão externa do Corona vírus em suas costas e com a incumbência de transformar/ adaptar/ ressignificar suas práticas até então presenciais, em práticas remotas/ distanciadas/não presenciais. Tiveram que sair da sala de aula da escola para o computador, tiveram que aprender a gravar, editar e postar vídeos, tiveram que correr contra o tempo e adaptar suas vidas a uma nova realidade laboral. Recebem, diariamente, por email/ whatsapp/telefone, a pressão dos pais, a pressão dos gestores, a tristeza saudosa dos alunos.
Eu tenho uma disciplina EAD agendada para iniciar dia 11 de maio, mas, eu já sabia, desde fevereiro, que ela iniciaria. Eu tive tempo de prepará-la e, mesmo assim, depois de fazer as atividades assíncronas com meu filho, vi a necessidade de modificá-la, repensá-la, desconstruí-la, porque percebi que minhas disciplinas, até então, não tinham andaimes suficientes.
Explico: Vygotsky diz que o processo de educação tem como pressuposto um “empréstimo de consciência”. Bruner, que escreveu o prefácio de pensamento e Linguagem nos Estados Unidos em plena Guerra Fria, amplia a discussão e modula “empréstimo de Consciência” para “andaime” (scaffolding), obviamente soava bem menos comunista e mais palatável para a comunidade acadêmica da época. Bruner estudou o andaime em diferentes situações, entre elas, os andaimes que realizavam as mães durante a brincadeira, com seus filhos, de montar pirâmides com pecinhas de madeira.
As inferências de Bruner são maravilhosas e mostram como utilizamos de estratégias geniais para dar (quando necessário) e retirar (quando possível) o andaime, o suporte, dos aprendizes. Os professores criam as condições de aprendizagem e utilizam de andaimes o tempo todo, em sala de aula. Os andaimes podem ser individuais ou coletivos. Em uma situação como a sala de aula, o andaime, muitas vezes, precisa ser pensado, planejado e, com a mudança de locus da sala de aula, muda, também, o veículo do andaime. Como vou dar o modelo? A dica, a instrução?
Ensinar e aprender não é transmissão de dados, senão era muito fácil! Faço seguidamente uma brincadeira com meus alunos para mostrar que a construção de conhecimento é algo interno: descrevo um monstro que cada um deve desenhar, sem olhar para o lado. Ao final temos uma coleção de monstros, um de cada jeito, apesar de serem as mesmas instruções, nas mesmas condições de luz, oxigênio e temperatura.
Pois bem, voltando aos andaimes... um professor de Porto Alegre, da rede estadual, me contou sua situação: que trabalha 60 horas semanais, diferentes turmas, um notebook em casa para a família, salário descontado, internet fraca que acaba no meio do mês e, a obrigatoriedade de fazer um curso sobre o Referencial Curricular Gaúcho! Curso, obrigatório, nesse momento!!! Uma professora de livramento divide-se nas disciplinas de Português, Inglês e Ensino Religioso, várias turmas para cada disciplina; muitos alunos provenientes de zona rural que não possuem internet. Essa professora envia atividades pelo WhatsApp porque o celular é o único dispositivo tecnológico de muitas famílias, a escola providencia material impresso. Também se sente atropelada pelo curso do referencial gaúcho cuja plataforma, pelo que contaram, é tenebrosa.
Tenho assistido algumas lives para tentar me “encontrar” nesse tumulto todo. Em várias que eu assisti os debatedores gastaram muito tempo questionando o batismo: se o que está acontecendo é “atividade remota ou EAD”. Há tanta necessidade assim em lidar com a nomenclatura nesse momento? Pode ser que sim, ainda não sei.
O que tenho sentido falta, nas lives, é da presença dos professores, de saber do que eles precisam; saber a opinião deles, do que estão fazendo para dar conta da situação, de como estão criando/ ofertando/ pensando os andaimes do dia-a-dia, de como estão agindo, remotamente, na zona de desenvolvimento proximal de seus alunos. Os professores acima citados estão extremamente preocupados com seus alunos e não querem receitas, não querem milagres, apenas reivindicam, com muita legitimidade, condições dignas e respeitosas de trabalho.
Acompanho, no facebook, algumas professoras que discutem suas práticas e problematizam o momento que estamos vivendo, como a Andrea Raffone no RS, a Belle Loivos , no RJ. Depois que as leio sempre tenho a vontade de me açoitar um pouco, para me purgar da culpa acadêmica. A sensação que fica é que o professor, que está na berlinda, não está sendo ouvido. Não está na live, que fala justamente sobre ele... sobre sua prática.
Os professores querem férias? Os professores querem curso sobre o referencial gaúcho ou sobre outro assunto? Ou, não querem curso nenhum, porque não há estômago nem cérebro para lidar com tudo isso agora. O que quer um professor?
Sinto falta, também, de uma voz de liderança na Educação, que dê um norte, que tranquilize, que suavize esses tempos que estamos vivendo. Uma lástima que não a temos.
Abraços virtuais e que sigamos nos apoiando mutuamente.
Tatiana Lebedeff