Superdotados por direito à educação
Superdotados enfrentam 'jornada' por direito à educação adequada nas escolas
Brasil tem 24 mil estudantes com aprendizagem acima da média, segundo Censo Escolar. Especialistas afirmam que número pode ser ainda maior.
Por Elida Oliveira, G1
Pedro Alonso, 13 anos, identificado como altas habilidades para história. — Foto: Arquivo Pessoal.
O estudante Pedro Alonso, de 13 anos, já trocou de escola quatro vezes. Seu raciocínio rápido fazia com que terminasse as tarefas antes do esperado e, quando ficava desocupado durante as aulas presenciais, incomodava os professores e alunos. Mas ele não era um "problema".
Identificado com altas habilidades/superdotação, termos identificados pelas siglas AH/SD, ele sabia mais do que a média. Isso deveria ajudá-lo na rotina escolar - mas o que aconteceu foi justamente o contrário.
O caso ganhou contornos ainda mais peculiares porque Pedro também tem autismo, o que demanda uma outra abordagem pedagógica.
As leis e regras educacionais preveem atendimentos específicos para AH/SD, mas nem sempre isso ocorre.
"A gente cansa de tentar fazer valer os direitos. Quando chega no limite, é mais fácil trocar de escola", afirma a mãe, Pricilla Alonso, de 51 anos.
O Brasil tem 24.424 estudantes considerados com altas habilidades/superdotação. Mas o número poderia ser maior, com identificação dos casos e notificação ao governo.
Pedro Alonso é um dos "famosos" dentro desta área. Seu canal no YouTube, sobre curiosidades, tem 13 mil seguidores. Ele já frequentou os palcos das palestras "TED" (veja vídeo abaixo) e fez parte do quadro "Pequenos Gênios", do programa Caldeirão do Huck.
Um talento que foi estimulado por iniciativa da família, segundo a mãe, porque as escolas não adotaram ações que atendessem às habilidades do menino.
"Eu tive que brigar na antiga escola do Pedro para eles adaptarem algumas coisas. Em outra, a coordenadora o proibiu de interromper o professor em sala, para que as outras crianças não achassem que o professor não sabia de nada", fala Pricilla.
"Ele achava as aulas repetitivas, porque outras crianças precisam de repetição. Mas ele fazia tarefa e saía da sala, ia para a biblioteca. Tinha dias em que o professor nem mandava chamar de volta", lamenta.
A legislação prevê:
- Enriquecimento curricular ou suplementação: o currículo é adaptado para estimular e desenvolver a habilidade do estudante. É comum em casos em que o aluno tem superdotação em uma área, mas fica na média em outras. Nestes casos, o estímulo ao raciocínio tem que ser direcionado.
- Aceleração de série: voltado a alunos com altas habilidades em todas as áreas, e maturidade para estudar com crianças mais velhas. Neste caso, o aluno avança de ano e estuda o mesmo currículo que os colegas daquela série.
- Contraturno escolar: atividades extras após as aulas regulares. Pode ocorrer em uma sala de recursos, dentro da escola, ou em projetos sociais para estes estudantes. Há ONGs que oferecem reforço escolar para alunos de escolas públicas com altas habilidades. Outras fazem parceria com colégios particulares de elite para dar bolsas a alunos carentes superdotados.
Pedro avançou duas vezes de série e, aos 13, está no primeiro ano do ensino médio. Hoje estuda em uma escola particular em Americana, no interior de São Paulo.
Não houve adaptação do currículo porque o nível das disciplinas já satisfaz a curiosidade do menino. Como forma de complementar a educação, Pricilla paga por aulas particulares em um projeto para superdotados.
A advogada Claudia Hakim, que tem dois filhos com altas habilidades, acabou se especializando na área.
Sua atuação já se estendeu para mais de 200 famílias, que entraram com ações judiciais para garantir os direitos das crianças superdotadas. A maioria, conta, é para fazer aceleração de série ou matricular estudantes aprovados em universidades antes de concluir o ensino médio.
"É importante o reconhecimento precoce e o atendimento. A legislação é clara e farta, o problema é a falta de identificação. Falta capacitação de profissionais, professores, diretores, para perceber superdotação. E há desconhecimento da lei por parte da secretaria de educação", aponta.
O risco de não identificar casos de altas habilidades é perder talentos, afirma a doutora em psicologia Christina Cupertino, coordenadora do Núcleo Paulista de Atenção à Superdotação.
"Ele desiste. Se a pessoa não for estimulada, ela vai ouvir que é um problema, que precisa ficar quieta, que não pode falar, questionar. Vai se retrair ou colocar fogo no parquinho", analisa.
Especialistas alertam que há falta de capacitação de professores para identificar casos que precisam ser encaminhados para avaliação, e também despreparo de algumas escolas ou redes de ensino.
"Nas faculdades de pedagogia, as altas habilidades são notas de rodapé. Não é que a pessoa não faz [a identificação] porque não quer, ela não faz porque não sabe", afirma Cupertino.
Mas, o que são as altas habilidades e superdotação?
Os termos "altas habilidades" e "superdotação" são sinônimos, segundo a mestre em educação de superdotados e membro do Conselho Brasileiro de Superdotação Cristina Delou.
Eles estão relacionados à aprendizagem e à forma como o raciocínio e a memória se constroem, explica Delou. Os testes geralmente levam meses para serem concluídos. Quem aplica precisa também observar a forma como aquele aluno pensa.
Pela definição do psicólogo educacional americano Joseph Renzulli, pessoas com altas habilidades ou superdotação têm três traços predominantes:
- habilidade acima da média: raciocínio em leitura e matemática, relação especial, memória e vocabulário;
- comprometimento: motivação empregada ao desenvolver uma tarefa, um foco ou concentração na atividade, com perseverança e paciência;
- criatividade: pensamentos originais, criativos, flexíveis.
Mas há diferentes graus de superdotação, explica Christina Cupertino. "O mais comum de encontrar são pessoas que têm desempenho médio ou baixo em algumas áreas e se destacam em outras", afirma.
Legislação
O conceito de altas habilidades/superdotação só passou a fazer parte da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que regulamenta a educação no país, em 2013.
Naquele ano, foi promulgada a lei nº 12.796, que altera a LDB e estabelece "atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino".
Dois anos depois, em 2015, a lei 13.234 foi promulgada para tornar obrigatório identificar, cadastrar e atender estudantes com estas características.
O Plano Nacional de Educação (PNE) prevê em sua meta 4 matricular todas as crianças de 4 a 17 anos com deficiências, transtornos de comportamento ou altas habilidades ou superdotação e ofertar atendimento especializado até 2024. Mas, segundo o observatório que monitora o andamento das metas, faltam pesquisas e indicadores que apontem se o objetivo está sendo cumprido.
Busca por alunos de altas habilidades em escolas públicas tenta evitar o desperdício de talentos
Ideia é complementar educação com aulas de reforço ou até bolsas em instituições de ponta.
Por Elida Oliveira, G1
Ana Paula Albuquerque, 12 anos, moradora da Maré, no Rio, faz parte do projeto do Instituto Sabendo Mais voltado a alunos com altas habilidades. — Foto: Arquivo Pessoal
Em busca de talentos "ocultos" nas escolas públicas, entidades ligadas à sociedade civil oferecem apoio a estudantes identificados com altas habilidades e superdotação. A ideia é oferecer um complemento à educação regular, com aulas de reforço ou até bolsas de estudo em instituições de ponta.
O Censo Escolar indica que há, no Brasil, 24.424 estudantes com altas habilidades/superdotação. O número poderia ser maior, caso fossem estimuladas a identificação destes casos e a notificação ao governo.
Quando identificados, estes alunos ganham os seguintes direitos, segundo a legislação:
- enriquecimento curricular, quando as disciplinas são adaptadas para estimular e desenvolver a habilidade do estudante;
- aceleração de série, quando o alunos tem altas habilidades em todas as áreas e maturidade para estudar com colegas mais velhos;
- atividades em contraturno escolar, com lições extras após as aulas regulares, aplicadas em uma sala de recursos, dentro da escola;
- atendimento em projetos sociais.
O risco de não identificar casos de altas habilidades é perder talentos, afirma a psicóloga Cristina Delou, doutora em educação e especialista em altas habilidades e superdotação.
"Eles ficam entediados, desanimam, começam a dizer que não querem ir para escola porque não há nada de novo, além do bullying entre adultos e crianças", afirma.
"Ele desiste. Se a pessoa não for estimulada, ela vai ouvir que é um problema, que precisa ficar quieta, que não pode falar, questionar. Vai se retrair ou colocar fogo no parquinho", analisa a doutora em psicologia Christina Cupertino, coordenadora do Núcleo Paulista de Atenção à Superdotação.
O G1 conversou com quatro alunos com altas habilidades e superdotação para saber o impacto desta identificação na vida escolar deles. Confira abaixo:
1º da família em uma universidade
Joao Lucas Pereira, 18 anos, tem altas habilidades e foi aluno do Instituto Ismart, no Rio. — Foto: Arquivo Pessoal
João Lucas Pereira, de 18 anos, é da Vila Kennedy, no Rio de Janeiro, bairro formado por uma favela e conjuntos habitacionais populares. Estudou na rede pública até o fim do ensino fundamental.
"Minhas professoras sempre falavam para a gente tentar um milhão de concursos para um milhão de colégios diferentes", conta, referindo-se às provas seletivas que algumas escolas fazem para o ingresso no ensino médio.
Uma destas provas era a do Instituto Social para Motivar, Apoiar e Reconhecer Talentos (Ismart), que atua em São Paulo, Cotia (SP), São José dos Campos (SP), Sorocaba (SP), Rio de Janeiro e Belo Horizonte. A instituição está com processo seletivo aberto, que se encerra na próxima quinta-feira (17).
João passou por avaliações que duram seis meses e têm cinco etapas. Foi identificado como superdotado e conseguiu uma vaga no colégio privado Sistema pH, onde fez o ensino médio. Para estudar lá, pegava quatro ônibus, levando duas horas em cada trecho do trajeto.
Filho de um pai que não concluiu o ensino fundamental e de uma mãe com escolaridade até o ensino médio, João recebeu um preparo que lhe rendeu uma vaga na universidade. Ele será o primeiro da família a ter ensino superior: passou em 5º lugar no vestibular de direito do Insper.
"Sofri bullying no colégio porque falava muito na sala, estava sempre à frente das coisas", relembra. "Minha família só começou a acreditar que eu poderia ter um caminho diferente quando viu que a bolsa era de verdade, que não ia ter que pagar, que eu pegava ônibus todo dia para estudar em um lugar longe de casa", conta.
"É realmente muito triste para mim ver que crianças e adolescentes com potencialidades incríveis, da minha comunidade, não conseguem ter desenvolvimento pleno por conta de 'N' questões da comunidade e tudo mais", relata. "O meu sonho, independente de qualquer profissão que eu vá ter no futuro, é impactar a sociedade de maneira positiva e poder devolver isso para a sociedade", aposta.
Na favela da Maré, talentos a lapidar
Ana Paula Albuquerque, 12 anos, moradora da Maré, no Rio, faz parte do projeto do Instituto Sabendo Mais voltado a alunos com altas habilidades. — Foto: Arquivo Pessoal
Na comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, Ana Paula de Albuquerque, de 12 anos, chamava a atenção da família desde pequena, porque aprendia as coisas rápido, conta a mãe, Luciana Maximiano.
Aprendeu a ler em duas semanas, segundo Luciana, com a ajuda de uma professora particular. "Como moramos em comunidade, quando tinha operação policial, ela ficava sem aula. Para não ficar muito tempo sem estudar, contratei uma professora", conta.
Na escola regular, na rede pública do Rio, Ana Paula costumava terminar as atividades rápido, antes dos colegas. Para manter a menina entretida, a professora pedia para que ela ajudasse os colegas.
Na Maré, há o Instituto Sabendo Mais, que aplica provas em escolas públicas para "garimpar" talentos escondidos. Ana Paula se destacou.
Foi identificada com altas habilidades e passou a ter aulas no contraturno escolar, dentro do instituto. A ideia, conta a diretora presidente Sandra Garcia, é enriquecer o repertório cultural e estimular o raciocínio. Assim, os estudantes ficam mais capacitados para concorrer a vagas em escolas bem avaliadas.
A preparação lhe rendeu uma vaga no Centro de Aplicação (CAP) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para o 6º ano do ensino fundamental.
Do trauma na vida escolar ao autoconhecimento
Emille Mascarenhas, 23 anos, foi identificada como superdotada aos 14 anos. Tem altas habilidades em artes, literatura, história, política, e economia — Foto: Arquivo Pessoal
Emile Mascarenhas, de 23 anos, é de São Luís e estuda letras na Universidade Estadual do Maranhão (Uema).
Ela foi identificada com altas habilidades aos 14 anos após passar por uma avaliação no Núcleo de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação (NAAH/SD), ligado ao governo do Estado. Foi levada até lá pela mãe, que já investigava a característica na irmã de Emile.
"Antes do diagnóstico, foi tudo bem complexo. Toda a minha história escolar é bem traumática. Tem períodos que apaguei da lembrança, porque cheguei a um nível de esquecer para não continuar machucando", conta. Mas, como não externava os problemas e tirava notas satisfatórias, o drama interno de Emile passava despercebido.
Ela conta que estudantes com AH/SD podem ser muito perfeccionistas e terem aversão ao erro. Em uma ocasião, uma professora de matemática a confundiu com outra Emile da turma, e disse em frente à classe que ela havia ido mal na prova.
"A professora disse que eu estava sendo burra, olhando para mim. Nunca mais consegui levantar a cabeça em sala de aula", relembra.
Emile tem altas habilidades em artes, literatura, história e política. Mas já ficou em recuperação em inglês, por exemplo. "Por isso, é difícil identificar. As escolas não têm métodos de avaliação diferentes que possam acompanhar o ritmo do aluno", critica.
"E a gente demora a descobrir as habilidades. Eu tinha plena convicção que todas as crianças poderiam fazer o mesmo que eu, se tentassem", revela.
Na graduação em letras, Emile conta que os debates sobre superdotados não são aprofundados, o que pode levar a uma falha na formação dos professores.
"Tive alguns professores que ignoraram 100% [o tema] quando levava estas discussões na aula. Em algumas disciplinas tínhamos discussões sobre educação especial e se falava muito sobre todas as deficiências, mas nunca eram mencionadas as altas habilidades", conta.
Encontrou seus 'pares'
Samuel Araújo (à esq), com a mãe Josiane Araújo e o pai Francisco Araújo. — Foto: Arquivo Pessoal
"Tinha essa ideia de que superdotação era um gênio. Nunca pensei isso a respeito do meu filho, mas via que tinha muita facilidade para aprender", conta Josiane Araújo, 58 anos.
Ela é mãe de Samuel Araújo, de 13 anos, aluno da rede pública do Paraná, identificado como superdotado aos 8.
Nos primeiros anos do ensino fundamental, Samuel era um aluno inquieto: questionava as professoras, era agressivo com colegas. Os pais achavam que o histórico de adoção influenciava a adaptação do menino.
"Ele tinha comportamento muito agitado, inquieto, perguntador, questionava as professoras, isso as irritava demais. Eu recebia muitas reclamações a respeito do comportamento do Samuel, mas não das notas", relembra.
"Quando foi para o segundo ano, continuou com o mesmo comportamento, mas a professora teve um olhar diferenciado. Ela avaliou que ele precisaria de uma psicóloga para dar um acompanhamento."
Aos 8 anos, ela o encaminhou ao psicólogo da rede municipal de Pinhais, no Paraná, e após três meses de avaliações, ele foi identificado com altas habilidades em linguística. A secretaria municipal de Educação o direcionou para uma Sala de Recursos Multifuncionais, complementar à educação regular.
Assim, ele fazia ensino regular em uma escola, em um turno, e atendimento para altas habilidades em outra escola, com uma professora doutora no assunto.
"Ali, ele encontrou seus pares e melhorou muito seu comportamento", conta Josiane Araújo.
Segundo a mãe, depois que a superdotação foi identificada, a relação com o menino ficou mais fácil, porque os pais passaram a entender as necessidades do filho. Ela também se envolveu nas atividades da área, e, como arquiteta, chegou a dar aulas de noções de arquitetura para crianças superdotadas e participar de palestras sobre o tema.
"O superdotado é uma criança normal, com necessidades normais, e um adicional. Não digo que é tranquilo, mas com o conhecimento adquirido ficou mais fácil ao longo do tempo. Tanto para nós, pais, quanto para ele, indivíduo, para não se entender como alguém diferente", afirma.
O que são altas habilidades/superdotação?
Pela definição do psicólogo educacional americano Joseph Renzulli, pessoas com altas habilidades ou superdotação têm três traços predominantes:
- habilidade acima da média: raciocínio em leitura e matemática, relação especial, memória e vocabulário;
- comprometimento: motivação empregada ao desenvolver uma tarefa, um foco ou concentração na atividade, com perseverança e paciência;
- criatividade: pensamentos originais, criativos, flexíveis.
Mas há diferentes graus de superdotação, explica Christina Cupertino. "O mais comum de encontrar são pessoas que têm desempenho médio ou baixo em algumas áreas e se destacam em outras", afirma.
Contatos
Instituto Sabendo Mais
- Site: https://institutosabendomais.org/
- Telefone: (21) 96401-1088
- E-mail: contato@institutosabendomais.org
Instituto Social para Motivar, Apoiar e Reconhecer Talentos (Ismart)
- Site: https://www.ismart.org.br/
- Instagram: @ismart.oficial
- E-mail: processoseletivo@ismart.org.br
Núcleo de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação (NAAH/S) “Joãosinho Trinta”
- Instagram: @naahsjoaosinhotrinta
- Telefone: (98) 3244-0756
- E-mail: naahsma@gmail.com