Uma denúncia necessária

Uma denúncia necessária

Censura: uma denúncia necessária

Terça-feira, 2 de outubro de 2018

Censura: uma denúncia necessária

Imagem Fotos Públicas

Liberdade de expressão é um direito fundamental.

Até mesmo em época de eleição.

Um direito liberal, aliás.

Por que então tantas pessoas têm sofrido perseguição e assédio em razão de manifestação de pensamento?

Discursos LGBTfóbicos, machistas, racistas, preconceituosos se disseminam como se não tivéssemos abolido a escravidão, superado a ditadura civil-militar e editado a Constituição de 1988, mas, curiosamente, não são seus autores que vêm sendo censurados.

Em 2017, uma reportagem d’O Globo denunciou o assédio dos professores por pais de alunos, especialmente em escolas particulares, direcionado contra quem manifestava opinião contrária a uma certa campanha de ódio.

Este ano, o Presidente do CNJ publicou o Provimento 71 restringindo a manifestação político-partidária das juízas e juízes em redes sociais, ampliando esse conceito.

A lógica de censura habita muitos ambientes de trabalho, nos quais a ameaça da despedida  é o argumento decisivo para o silêncio.

Até impressiona. Basta que uma pessoa se posicione contra o fascismo, para que imediatamente se materialize alguém que, a apontar o dedo, tenta impor o silêncio que tanto caracteriza regimes de exceção.

E algumas instituições atuam como agentes úteis da disseminação da censura, advertindo, perseguindo ou punindo quem ousa dizer, por exemplo, “ele não”.

A enunciação dos motivos pelos quais escolhemos ou rejeitamos determinados projetos de governo constitui elemento de um viver democrático. E de certo modo, estávamos acostumados a isso, pois faz 30 anos que discutimos políticas e projetos de Estado, sem que a censura estivesse desse modo presente em nossa realidade.

Calar à força a opinião política é negar condição de cidadania.

Aliás, no caso do Brasil de 2018, é bem mais do que isso.

Discursos de ódio, preconceito, racismo ou misoginia, não são democráticos, e é indispensável que tenhamos ao menos a possibilidade de dizer isso, em todos os espaços de fala possíveis.

Afirmar “#elenão” não é fazer política partidária; é posicionar-se contra um discurso de extrema violência simbólica.

Não é razoável fazer brincadeiras com foto de um ser humano sendo torturado, então, dizer isso em voz alta é resgatar nossa dívida histórica com quem viveu os tempos sombrios de nosso passado recente e não calou; é reafirmar nossa humanidade.

É violento e desumano referir que algumas mulheres merecem ser estupradas ou que, ao criarem filhos sozinhas, as mães e avós constituem fábricas de desajustados. Portanto, enunciar a repulsa a um tal discurso é assumir compromisso moral com nossa condição de seres plurais e capazes de respeitar a integridade física, moral e emocional de todas as pessoas.

Agride a mínima inteligência pensar que discutir gênero na escola determinará a escolha sexual de alguém. Dizer isso é honrar o percurso de visibilidade e inclusão de quem assume suas escolhas de vida e, sobretudo, reafirmar nossa lucidez e racionalidade.

Incitar discriminação contra quilombolas é ofensivo, cruel e perverso. Calar diante disso é negar toda a história de luta contra a escravização em nosso país.

Então, impedir que tais críticas sejam enunciadas é bem mais do que tentar evitar manifestações políticas; é comprometer-se com o retrocesso. Afinal, a quem interessa o silencio imposto?

A livre manifestação de nosso pensar acerca de declarações e posicionamentos publicamente assumidos pelos candidatos não irá determinar o voto de ninguém.

Criará, porém, racionalidades para a compreensão do momento histórico em que vivemos e nos permitirá assumir um lugar de fala que nos identifique enquanto seres pensantes.

Precisamos discutir declarações que de antemão negam respeito ao resultado das urnas, que propõem uma constituinte de “notáveis” ou que declaram considerar inúteis órgãos de defesa de direitos sociais, porque isso nos afetará como sociedade.

A censura à manifestação de pensamento, seja em que ambiente for, provoca medo de retaliações, de perda do emprego, de ataque midiático e de assédio.

Ao disseminar esse medo, compromete-se toda forma honesta de diálogo.

Afinal de contas, é preciso que se diga claramente o que está em jogo nas eleições que se avizinham.

Nossa escolha será entre apostar na ruptura democrática ou tentar a retomada de um caminho alinhado com os preceitos da Constituição de 1988.

Não se trata de banir ou restaurar a fé em um partido, combater a corrupção ou alinhar-se à esquerda ou à direita.

Temos vários candidatos no páreo eleitoral e a maioria deles não se comunica através da incitação ao ódio.

Trata-se de assumir compromisso com nossas conquistas históricas, com nosso passado recente, com nossa ordem jurídica.

É sintomático que, havendo um discurso fascista a disputar espaço entre aqueles que pretendem nosso voto, reapareça a censura como método.

Enquanto escrevo, a música Cálice me visita em pensamento.

Antes de tentar calar quem muitas vezes apenas quer compreender como conseguimos chegar até aqui, vamos refletir com seriedade: afinal, em que tipo de sociedade queremos viver?

Valdete Severo é Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Membra da AJD – Associação Juízes para a Democracia; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, Juíza do Trabalho.

Leia também:

A independência judicial na berlinda

Provimento 71: Controle ideológico e amordaçamento contra juízes no CNJ

A difícil defesa da Democracia em um Estado de Exceção

Proteção contra a despedida: uma medida que protege as trabalhadoras brasileiras

 

http://www.justificando.com/2018/10/02/censura-uma-denuncia-necessaria/ 




ONLINE
14