Vacina sabotada
No Brasil, a campanha de vacinação foi interrompida, ''sabotada'' por Jair Bolsonaro
Anti-vacina notório, o presidente recusou-se a ser imunizado e pediu à população para não servir de 'cobaia' às empresas farmacêuticas
Por Bruno Meyerfeld 04/03/2021
Créditos da foto: Manifestantes exigem o impeachment do presidente Jair Bolsonaro e melhor acesso às vacinas, em Brasília (Brasil), em 21 de fevereiro (Ueslei Marcelino/Retuers)
Colocada em cruzamento, uma placa azul completamente nova indica a direção a seguir. “Vacinação drive-in”, lê-se em português, com uma seta apontando para a direita. Mas neste final de fevereiro, na entrada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, simbolicamente localizada na Avenida Pasteur, no bairro de Botafogo, não há seringas nem enfermeiros (as) no horizonte. E menos ainda vacina.
No entanto, é aqui, neste campus arborizado, que uma vasta campanha de imunização contra a Covid-19 deveria ocorrer todos os fins de semana, dirigida aos cariocas mais velhos, que vieram fazer fila em seus carros. Mas a escassez de vacinas terá decidido de outra forma: "Não vacinamos há vários dias. Volte em uma semana!", notifica um dos zeladores.
Uma semana ? Na melhor hipótese. Um mês após seu início em grande alarde, a campanha nacional de vacinação foi paralisada. No segundo foco global da epidemia, apenas 7 milhões de brasileiros haviam recebido a primeira dose até 21 de fevereiro, somente 3,3% da população. Insuficiente para deter, ou mesmo desacelerar, a corrida desenfreada do coronavírus, que já matou aproximadamente 250 mil pessoas no país.
Por falta de doses para ministrar, várias cidades, inclusive cinco capitais regionais - entre elas Rio e Salvador - tiveram que interromper abruptamente o processo em meados de fevereiro. A administração das primeiras doses não foi feita sem escândalos, com má distribuição de estoques, fraudes em filas ou ainda "falsas injeções", administradas com seringas vazias, cheias de ar.
Bolsonaro, anti-vacina notório
Essa grande desordem é particularmente preocupante, pois ocorre em um país que foi durante anos referência mundial no combate às epidemias. Em 1973, o Brasil implantou um programa nacional de vacinação, centralizado e proativo, conseguindo erradicar a poliomielite, o tétano, o sarampo e a rubéola em poucos anos. Melhor ainda: o gigante latino-americano produz hoje 75% das vacinas que consome. Um motivo de orgulho para os brasileiros, entre os quais oito em cada dez afirmam querer ser vacinados contra a Covid-19. Uma das taxas mais altas do mundo.
“Para a gripe H1N1, em 2009, conseguimos ministrar 30 milhões de doses da vacina em um mês. Nada a ver com o caos atual… ”, lembra Gulnar Azevedo e Silva, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Para ela, a responsabilidade pela situação é cristalina: “Claro, existe a carência global. Mas a causa principal está na ação do governo de Jair Bolsonaro. "
Desde o início da pandemia, um trabalho regular de sabotagem tem sido feito em esferas elevadas do Estado para evitar qualquer campanha de vacinação no Brasil. Notório anti-vacina, o próprio presidente tem assinalado reiteradamente sua teimosa recusa em ser imunizado, exortando a população a não servir de "cobaia" às empresas farmacêuticas. “Se [depois de receber a injeção] você se transformar em jacaré, o problema é seu!", chegou a declarar em dezembro de 2020, entre bufão e ameaçador.
“O Bolsonaro está fazendo de tudo para bajular sua base mais obscurantista, conspiratória, contrária à ciência”, acusa Alexandre Padilha, deputado do Partido dos Trabalhadores (PT, esquerda) e ex-ministro da Saúde (2011-2014).
Semeando dúvidas no público
Fazendo o que fala, o governo brasileiro [NT: de Brasília no original em francês] recusou-se por meses em 2020 a negociar acordos comerciais com a maioria das empresas farmacêuticas do mundo. Entre agosto e setembro, a Pfizer formulou ao país uma oferta generosa para a aquisição de 70 milhões de doses da vacina. Jair Bolsonaro nem se dignou a responder.
Também está fora de questão comprar a vacina "comunista" CoronaVac do chinês Sinovac, acusada por Bolsonaro de causar "morte, invalidez e anomalia". Ainda, por ser produzida no Brasil pelo Instituto Butantan (equivalente local do Pasteur), sob a responsabilidade do governador de São Paulo, João Doria, principal oponente pela direita do presidente para o voto supremo de 2022. Na Internet, seus apoiadores disseminam maciçamente uma nova hashtag: #Nãoavacinachinesa.
Jair Bolsonaro então pressiona ao máximo a Agência Nacional de Saúde (Anvisa), para a qual nomeou grande parte dos dirigentes, e obtém, em 10 de novembro de 2020, a suspensão inesperada dos ensaios da fase 3 do CoronaVac no Brasil, após a morte de um voluntário - um suicídio, sem relação com a dose injetada. O processo finalmente foi retomado após apenas 48 horas. Mas isso basta para lançar dúvidas no público.
Do lado do Ministério da Saúde, chefiado pelo General Eduardo Pazuello, há uma recusa obstinada em definir qualquer calendário de vacinação. A campanha começará "no Dia D na hora H", escamoteou o ministro em 11 de janeiro diante de uma imprensa estupefata. Em uníssono com o presidente, o militar defendeu durante meses pseudo "tratamentos precoces", até mesmo nebulosos: ivermectina, azitromicina, nitazoxanida, várias vitaminas ... E claro, hidroxicloroquina.
Recuo
Sob pressão, principalmente do meio empresarial, a Anvisa finalmente "liberou", mas bem tarde, no dia 17 de janeiro, o uso das vacinas AstraZeneca e CoronaVac. Um golpe para Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello.
O último faz agora por todo lado apologia às vacinas, prometendo a imunização de toda a população até o final do ano, graças às 455 milhões de doses a serem injetadas. Um recuo em quinta marcha. “Temos uma previsão fantástica de entrega da vacinas! », garante o Sr. Pazuello. Mas o cronograma previsto pelo general traz ceticismo. Em seu cálculo, ele leva em consideração milhões de doses das vacinas russa Sputnik V e indiana Covaxin, para as quais ainda não foi assinado nenhum acordo de aquisição. A produção da CoronaVac em São Paulo também foi bastante desacelerada, devido à falta de ingredientes ativos importados da China.
“Para este plano avance, seria necessário um compromisso total do governo. O que está longe de ser o caso ”, lamenta Gulnar Azevedo e Silva. Com a entrega das novas doses de CoronaVac e AstraZeneca, a campanha certamente poderá ser retomada nos próximos dias. Mas outra ameaça paira no ar: a da variante amazônica, que se espalha em alta velocidade. Ninguém sabe ainda se as vacinas atuais serão eficazes contra ela.
*Publicado originalmente em 'Le Monde' | Tradução de Aluisio Schumacher
Teremos o março mais triste de nossas vidas,
prevê Margareth Dalcolmo, da Fiocruz
Em vários municípios brasileiros, leitos de enfermaria e UTI estão lotados de pacientes com covid-19.
Não há mais vagas e os doentes não param de chegar. Segundo as secretarias estaduais de saúde, 17 Estados têm ocupação em hospitais acima de 80%, um nível considerado crítico. Outros oitos Estados têm taxas que superam os 90% — no Rio Grande do Sul, por exemplo, o número chegou a 100%. Onde ficarão essas pessoas que precisam de atendimento?
E como poderemos conter essa avalanche de novos casos que põe em xeque o sistema de saúde e poderia afetar até mesmo a estabilidade social do país?
O que fazer para se proteger num momento tão crítico? Esses são alguns dos temas que preocupam a pneumologista Margareth Dalcolmo, professora e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro.
Ela fala sobre eles nesta entrevista ao repórter André Biernath, da BBC News Brasil. Confira.
Leia também a versão em texto: https://www.bbc.com/portuguese/brasil...