Vacina sem saída

Vacina sem saída

VACINA SEM SAÍDA

Marco António Pontes de Jesús

Professor, médico aposentado e ativista do movimento negro.

 

Eu sempre escrevo sobre o amor. Todas minhas crônicas foram sobre o amor. Estamos todos vendo as longas filas Brasil afora das pessoas esperando fazer a 1ª. ou 2ª. Dose da vacina. Façam a experiência de um olhar mais apurado sobre elas. Tem uma unidade de vacinação perto da minha casa. Inclusive lá não se vacina contra mais nada. Só contra Covid-19. São homens e mulheres nas filas em sua maioria brancos de classe média baixa para cima. São essas pessoas que estamos vacinando majoritária e prioritariamente. Está errado o PNI. Não. A fila é assim mesmo. Parece injusto porque deveria ter mais negros, pardos e pobres aguardando na fila. Nesse caso parecia mais justo homens negros, velhos e pobres. O racismo estrutural torna essa fila metodologicamente correta. Um plano sanitário tem de começar pelos mais velhos, depois pessoas portadoras de comorbidades. Em especial, quando não havia prevalência de mortalidade entre os infantes. Apenas esse corte escancara o racismo estrutural em toda sua crueldade. Os negros são o número maior de mortos pelo coronavírus porque são mais pobres, mais vulneráveis. Não atingem massivamente a faixa de corte para vacinação porque não alcançam tal faixa etária e não tem plano de saúde para durar o suficiente com suas comorbidades e serem vacinados. Trabalham no chão de fábrica, na construção civil, supermercados, prestação de serviços e transporte público.

Faltava complicar mais um pouco ou cumprir o eugenismo de alguém: abram-se as escolas. As escolas privadas estão cheias de professoras pretas que conseguiram terminar uma licenciatura. E as públicas estão mais cheias ainda de professoras pretas e cheias de negros e negras como alunos. Não está acontecendo nada de mais, só o de sempre. Hoje já são 77% o número de negros mortos pelo coronavírus no genocídio vigente no Brasil. Não é necessário chegar-se aos números finais para ver o escândalo que isso representa para a história sanitária brasileira. O significado disso para a história dos negros no Brasil. O PNI é apenas mais uma das injustiças contra os negros no sentido marxista do termo como é exposto na Crítica do Direito de Hegel: quando não se faz uma injustiça em particular prendendo-se um inocente, mas se faz uma injustiça contra a condição de um ser humano, um negro, um LGBT+, uma mulher ou uma criança.

Agora é a hora de se cobrar os omissos em relação a mortandade de negros e ninguém diz nada. Porque quem sente na pele não tem fala e quem fala não sente na pele. A hora é bruta, é necessário a espada da justiça. E justiça não vem. Cada vez que se inventa uma injustiça no Brasil os negros sabem que vão pagar por ela culpados ou não. Azar dos negros se não conseguem tratar suas doenças e morrem cedo. Azar deles se suas comorbidades não estão listadas na vacinação prioritária. Não assusta o ritual da morte aos negros porque aprenderam a dançar e beber os defuntos. No final, apesar de tanta tristeza e iniquidade se celebra a passagem para a espiritualidade. Mas que pode saber um homem branco de classe média e temente a Deus sobre isso, se esse tipo de injustiça se tornou natural para ele. Mas nós, negros, sabemos ser o único gesto de amor restante em todo esse sofrimento. Afinal essa é mais uma crônica sobre o amor e de amor. Só sei escrever sobre amor. Amor às pessoas.


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