Veto do celular nas escolas
Veto do celular nas escolas: fiscalização não pode recair sobre professores
Ministério da Educação deve criar condições para garantir o efetivo cumprimento da lei; proibição de celular já é motivo de agressões contra docentes em todo país
Diálogos do Sul Global Salvador (BA) -
O fato de o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva haver sancionado, na última segunda-feira (13/1/2025), o Projeto de Lei que restringe a utilização de aparelhos eletrônicos portáteis (a exemplo de celulares), por parte dos estudantes, nas escolas públicas e privadas de Educação Básica do País, precisa ser aplaudido.
No entanto, não basta a existência da Lei. Torna-se imprescindível a fiscalização para garantir que a aplicação dessa nova legislação ocorra, na prática. E que essa tarefa não seja direcionada ao corpo docente.
Ainda que boa parte da sociedade esteja de acordo com a restrição, sabemos que não será fácil, sobretudo para quem lida diretamente com estudantes em salas de aula. Certamente enfrentará a “rebeldia” de muitas crianças e adolescentes, as quais contarão, inclusive, com a anuência de seus familiares. Mas é preciso ter firmeza, porque já está mais do que comprovado cientificamente que o uso excessivo de telas acarreta inúmeros prejuízos à saúde física, mental e cognitiva das pessoas.
Embora o celular seja uma ferramenta de comunicação e de acesso à informação extremamente valiosa, seu uso inadequado e/ou excessivo pode resultar em impactos significativamente negativos. Em termos de saúde, esse excesso tem sido associado a diversos problemas, conforme demonstram várias pesquisas científicas.
Prejuízos a curto e longo prazo
O estudo publicado na JAMA Psychiatry (2023), intitulado “Associações longitudinais entre o uso de dispositivos móveis para acalmar e reatividade emocional e o funcionamento executivo em crianças de 3 a 5 anos” (título original: “Longitudinal Associations Between Use of Mobile Devices for Calming and Emotional Reactivity and Executive Functioning in Children Aged 3 to 5 Years”), sugere que o uso frequente de dispositivos móveis para acalmar crianças pequenas pode deslocar suas oportunidades de aprender estratégias de regulação emocional ao longo do tempo.
Pesquisa conduzida pela American Academy of Sleep Medicine (2023) constatou que o tempo excessivo de tela, especialmente à noite, está diretamente relacionado ao aumento dos casos de insônia, distúrbios do sono e cansaço diurno. Outras pesquisas apontam que o uso desses dispositivos móveis antes de dormir pode prejudicar a qualidade do sono, um problema recorrente entre adolescentes, jovens e adultos. Um trabalho publicado no Journal of Clinical Sleep Medicine (2022) detectou que 80% dos participantes que usaram o celular nas duas horas antes de dormir tiveram dificuldade em adormecer e relataram uma redução no tempo total de sono. O uso da tela diminui a produção de melatonina, hormônio responsável pelo sono, o que dificulta o adormecer.
Além disso, a literatura científica demonstra que pessoas que passam muito tempo olhando para as telas estão mais propensas a desenvolver problemas oculares, a exemplo da síndrome da visão computacional, cujos sintomas incluem dor nos olhos, visão embaçada e dores de cabeça.
Não bastasse isso, o uso constante de celulares pode contribuir para distúrbios posturais, com o aumento de casos de dores no pescoço, ombro e coluna, devido à posição incorreta ao usar o dispositivo. Não raro vemos adolescentes e jovens com corpos encurvados, e não é difícil deduzir qual seja a causa da maioria dessas incidências. O uso contínuo de dispositivos móveis está associado a uma série de problemas posturais e musculoesqueléticos, conforme estudo realizado pela National Library of Medicine (2021), o qual revelou que mais de 70% dos usuários de smartphones relataram dores no pescoço, nos ombros e nos punhos. Conforme o estudo, esse problema é comumente referido como “text neck” (pescoço de texto), uma condição relacionada à postura inadequada durante o uso prolongado de dispositivos móveis.
Relações sociais e interpessoais
Ademais, não devemos nos esquecer de que, no que concerne às relações sociais, o uso excessivo do celular pode resultar em um enfraquecimento das interações face a face, uma vez que as conversas e encontros sociais acontecem mediadas por telas, fato que contribui de modo significativo para a redução da profundidade e da qualidade das relações interpessoais. Muitas vezes me assusto ao tentar conversar com meu sobrinho de 16 anos e perceber que não consigo retirar dele mais do que “é”, “sim”, “não” e outras expressões monossilábicas.
Em minha experiência enquanto docente universitária, também observo situações bastante preocupantes. Não raro deparo-me com jovens que não conseguem articular o pensamento de forma concatenada para expressar opiniões acerca de determinadas questões. A constante exposição às telas, associada ao consumo de conteúdos muitas vezes fúteis e superficiais, têm impactado negativamente neste sentido em muito(a)s estudantes do ensino superior, comprometendo sua formação profissional. Em conversas ocasionais, ouvi relatos de alguns/algumas que já se deram conta do problema, mas não conseguem se desvencilhar dessa exposição às telas, porque já se tornaram dependentes.
Do ponto de vista mais coletivo, a dependência excessiva dos dispositivos móveis resulta na diminuição da capacidade crítica, e na dispersão da atenção de boa parte das pessoas. O fluxo constante de informações, muitas vezes desorganizado e sem contextos adequados, diminui a capacidade de formação de compreensões mais profundas e reflexivas sobre temas importantes, e isto tem contribuído para um fenômeno de superficialidade no consumo de conteúdo, como estamos vivenciando atualmente não apenas no Brasil, mas no mundo.
Pesquisa publicada na Psychological Science (2022) indicou que adolescentes que gastavam mais de 3 horas por dia em suas telas apresentaram pior desempenho em testes de memória e capacidade de atenção, comparados a aqueles com uso mais moderado. Este, aliado aos demais efeitos sobre os quais nos referimos anteriormente, não pode ser ignorado quando falamos de educação escolar: formam um “combo” prejudicial que não pode ser desconsiderado pelas famílias, pelas educadoras e pelos educadores de um modo geral.
Lei boa é lei aplicada
Por isso, a atitude do Presidente Lula em sancionar a Lei Nº 15.100, de 13 de janeiro de 2025, precisa ser realçada. Realço, ainda, o discurso do mandatário quando ele disse que “O humanismo não pode ser trocado por algoritmos”. Sensacional! Como crítica contundente ao Presidente, e a seu governo, tenho que dar-lhes uma “trégua” para elogiar essa atitude contundente no enfrentamento a um problema que afeta negativamente a nossa infância, adolescência e juventude, comprometendo seu futuro, principalmente daquelas e daqueles oriundos de famílias humildes, que não dispõem de condições para acessar um tratamento de “desintoxicação” desta que eu considero a “droga mais eficaz” do momento. Justamente porque, como o álcool, é aceita e tem a adesão social massiva.
No entanto, é preciso que o governo, através do Ministério da Educação, crie as condições para garantir o efetivo cumprimento desta Lei, não deixando que as docentes e os docentes, que estão na linha de frente da sala de aula, assumam mais esse encargo na sua rotina diária de prover a educação formal para crianças, adolescentes e jovens em nosso país. E que esta nova lei não seja como a chamada “Lei Seca” (Lei 11.705, aprovada em 2008), que não vem sendo aplicado devidamente, haja vista a quantidade de mortes causadas pelo uso de álcool por motoristas irresponsáveis, em todo o Brasil.
Segundo o levantamento da Polícia Rodoviária Federal (PRF), a combinação de álcool e direção matou 77 pessoas em 1.507 sinistros registrados entre janeiro e maio de 2024. O referido levantamento mostrou que foram realizadas 18.705 operações da Lei Seca no país, no período em questão, e que as fiscalizações resultaram na aplicação de 4.013 infrações relacionadas à direção sob efeito de álcool. Esses número são ínfimos, quando comparados aos números de condutores e condutoras com habilitação no Brasil. Em 2020, de acordo com dados do Ministério de Infraestrutura/Senatran, éramos mais de 74 milhões. Mesmo com esses dados antigos, já podemos ter uma ideia da pouca representatividade dessas fiscalizações.
A minha experiência como condutora mostra que, pelo menos aqui no estado da Bahia, as operações de fiscalização são muito escassas no sentido da verificação do consumo de bebidas alcoólicas. Já fui parada algumas vezes por fiscalizações da PRF, assim como da Polícia Rodoviária Estadual (PRE), e jamais fui questionada sobre o uso de álcool, ou mesmo verificada. Tampouco, nessas ocasiões, vi outro(a)s condutore(a)s sendo fiscalizado(a)s neste sentido. Residi na capital baiana de janeiro de 2004 a fevereiro de 2011, uma cidade turística. E não via operações com o chamado “bafômetro”. Isso somente ocorreu em algumas ocasiões logo depois de sancionada a referida Lei. E de março de 2011 até a presente data, vivo em outra cidade turística (Ilhéus, Sul da Bahia), e tampouco vejo fiscalizações.
Por isso, o fato de uma legislação ser pertinente não garante que ela seja cumprida. Em relação a essa nova lei que proíbe o uso de celular pelos estudantes da Escola Básica nas redes pública e privada, precisa ser regulamentada de forma a assegurar as condições de cumprimento, sob pena de cair no esquecimento e/ou na negligência. E neste caso, principalmente, o Estado não pode delegar às professores e aos professores o papel de “fiscalizadores”, sobretudo quando consideramos os casos de violências dos quais têm sido vítimas, motivados por essa e outras questões — violências que, inclusive, têm levado muito(a)s docentes a desistirem de suas carreiras.
Conheço relatos de docentes da Escola Básica cujos familiares já foram às instituições protestar quanto a restrição do uso de celulares em suas aulas. Recentemente, tive uma estudante que era professora de inglês em uma escola particular aqui no Sul da Bahia, que me relatou ter sofrido agressão verbal de um pai, cujo filho queixou-se da proibição imposta por ela em uma de suas turmas. Episódios como esse indicam que, sem regulamentação que assegure modos eficazes de fiscalizar e sancionar, o peso da responsabilidade recairá, certamente, no corpo docente, principalmente (e não exclusivamente) das escolas privadas, que têm, infelizmente, muitos casos do velho e bom “estou pagando”.
As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.
Verbena Córdula
Graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.
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