Você não estava aqui

Você não estava aqui

A força do filme "Você não estava aqui"

Em novo filme, Ken Loach ataca a economia dos apps como o Uber, que considera intolerável

'Queria que espectadores deixassem o cinema com raiva', diz diretor de 'Você não Estava Aqui'

27.fev.2020          Ricardo Balthazar

SÃO PAULO

 

Um operário da construção civil em busca de emprego apresenta suas credenciais a um serviço de entregas a domicílio no início de "Você Não Estava Aqui", novo filme do diretor britânico Ken Loach. "Já fiz de tudo", diz Ricky Turner. "Prefiro trabalhar sozinho agora, ser meu próprio patrão."

O supervisor da empresa apresenta então as regras do lugar. "Você não trabalha para nós, você trabalha conosco", explica.

Não há salário fixo, nem direitos trabalhistas, nem metas de desempenho. "Nada de bater o ponto, você fica à disposição", avisa. "Como tudo aqui, Ricky, a escolha é sua."

Bem-vindos ao admirável mundo novo criado pelo capitalismo contemporâneo, em que novas tecnologias e contratos flexíveis de trabalho transformaram atividades tradicionais como entregas de encomendas e transporte de passageiros, tornando o setor de serviços um dos mais dinâmicos da economia.

Na visão de Loach, as mudanças são uma armadilha para pessoas como Ricky (interpretado por Kris Hitchen).

O filme busca demolir uma a uma as promessas da nova economia, até alcançar um desfecho dilacerante em que todas as esperanças que Ricky tinha de uma vida melhor parecem se esvair.

"Eu queria que os espectadores deixassem o cinema com raiva", disse o cineasta à Folha, em entrevista concedida por telefone de Londres na terça-feira (25).

"Eu queria que saíssem frustrados com uma situação que considero intolerável, e conscientes de que é preciso resistir e mudar essas coisas."

O tempo passa, mas Loach está onde sempre esteve.

Aos 83 anos, fiel às ideias de esquerda que abraçou na juventude, ele construiu uma filmografia sólida, que retrata a injustiça social com realismo e sem proselitismo. "Você Não Estava Aqui", que estreia nesta quinta (27) no Brasil, é seu 26º longa.

O cineasta começou a pensar no tema com o roteirista Paul Laferty, seu colaborador desde os anos 1990, quando ainda estavam filmando "Eu, Daniel Blake", o contundente ataque à burocracia do sistema de proteção social britânico que lhe rendeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2016.

"O mundo do trabalho se transformou e queríamos mostrar isso", diz Loach.

"A segurança que muitas profissões ofereceram no passado, quando os trabalhadores não tinham medo de ficar sem emprego de um dia para o outro e conseguiam planejar melhor suas vidas, acabou para muitas pessoas."

No filme, Ricky dirige o próprio furgão e corre o dia inteiro para fazer entregas e evitar as multas impostas em casos de atraso ou para quem falta ao trabalho e não arranja um substituto. Com pouco tempo para a família, Ricky só consegue conversar com a filha quando a leva para trabalhar com ele.

O longa também acompanha o dia a dia da mulher do motorista, Abby (Debbie Honeywood), que trabalha como cuidadora de idosos e atende os pacientes em suas casas. Depois de vender o carro para que Ricky dê entrada no furgão, ela se desdobra para conciliar o trabalho e a vida doméstica.

Laferty andou nas ruas com motoristas como Ricky e entrevistou enfermeiras como Abby para que o roteiro fosse o mais fiel possível à realidade.

Muitos não quiseram conversar, afirma Loach, porque temiam perder seus empregos se falassem. Todos mereceram um agradecimento nos créditos finais do filme.

A pesquisa permitiu rechear o filme com detalhes preciosos, como a linguagem do supervisor do serviço de entregas, Maloney (Ross Brewster), que fala em honorários em vez de salários e classifica como sanções as penalidades impostas aos que não cumprem o regime de trabalho adotado pela empresa.

Quando Ricky lhe pede uma folga para ajudar o filho adolescente a se livrar de uma encrenca, ouve do chefe uma lição sobre a integração da empresa com a cadeia logística de companhias multinacionais, a competição no mercado e o desprezo dos clientes pelas condições de trabalho dos motoristas.

Em outro momento, Maloney lembra que as coisas já foram piores, ao observar que o pai agricultor trabalhava de sol a sol sem ajuda nem descanso.

"É um argumento comum, mas fraudulento", diz Loach. "Não é possível justificar a exploração de alguém com a exploração de outra pessoa no passado."

Filmado em Newcastle, cidade populosa no norte da Inglaterra, o longa também demonstra preocupação com o impacto ambiental da nova economia, ao mostrar os furgões de Ricky e seus colegas queimando combustível para atravessar o trânsito congestionado do lugar para entregar seus pacotes.

"A exploração dos trabalhadores e a destruição do planeta estão associadas e não podemos assistir a isso sem reagir", diz Loach.

"Políticos de esquerda deveriam articular essas questões no mundo inteiro, mas se alinharam com as empresas em vez de defender os interesses da classe trabalhadora."

Críticos apontaram no filme ecos de "Ladrões de Bicicletas", clássico do neorrealismo italiano que Vittorio de Sica dirigiu em 1948, quando a Itália tentava se reerguer das ruínas da Segunda Guerra Mundial.

Loach cita o filme como um dos que tiveram maior impacto em sua formação como cineasta.

"Ele me fez perceber que o cinema podia ser sobre pessoas comuns e seus dilemas", disse Loach há alguns anos, num depoimento ao jornal The Guardian em que rememorou a primeira vez em que viu a obra, na adolescência.

"Não era um filme sobre estrelas, riquezas ou aventuras absurdas."

Mas o diretor não é do tipo que perde tempo com citações dos clássicos que o influenciaram.

"Aprendi muito com eles no começo, mas o que determina um filme é a história que quero contar, são os personagens, a realidade do mundo lá fora, e não o que eu poderia extrair de outros filmes", afirmou Loach à Folha.

Ele acompanha à distância o avanço das novas tecnologias no mundo do cinema, com a participação crescente de plataformas como a Netflix na produção e na distribuição de filmes.

Loach, que iniciou a carreira na televisão, afirma que nunca viu um filme na internet, onde é muito difícil encontrar seus trabalhos.

"As pessoas se concentram melhor na sala escura do cinema e prestam mais atenção no que veem na tela", diz o diretor.

"É uma experiência muito mais forte do que aquela que é possível ter em casa, onde você pode interromper o filme a qualquer momento para tomar café e fazer outras coisas."

O roteirista Laferty chegou a anunciar a aposentadoria de Loach em 2014, quando ele exibiu "Jimmy's Hall" em Cannes.

Loach estava exausto após a produção, mas voltou a filmar dois anos depois e ainda não sabe quando vai parar. "Preciso perguntar ao médico se posso fazer outro", brinca.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/02/em-novo-filme-ken-loach-ataca-a-economia-dos-apps-como-o-uber-que-considera-intoleravel.shtml 

 

O jornalista Leonardo Attuch e o crítico de cinema Renê Guedes falam sobre o filme e a obra do cineasta Ken Loach.

 

 




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